Rio Barcelos

Rio Barcelos

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Porquinho


Anjinho despertou com o rinchado de porco. Uma correria no lado de fora da casa, no fundo do quintal. Decerto o pai perseguia um dos porcos que fugira do chiqueiro. Era bom que ele se levantasse logo da cama e fosse ver o que estava acontecendo.
- Mas é tão cedo! A réstia de sol ainda nem entrou pela telha de vidro. Tudo escuro. Um frio.
Cedo, mas, como o sono fora embora de vez, tomou coragem e se levantou.
A mãe estava na cozinha, sentada num banquinho, escamando uns peixes miúdos. Ele parou no batente que levava do corredor à cozinha e ficou observando a mãe, sem ser visto. Achou engraçada a calma dela. Pegava um peixinho com leveza, escamava-o, cortava a cabeça fora, tirava as barbatanas e o rabo, dava um corte de alto a baixo na barriga, abria-o e tirava as tripas, e, com delicadeza punha-o no cocho com água. Pegava outro peixe e repetia tudo, igualzinho. E os peixes eram muitos. Tinha que os tratar e salgá-los, para depois colocá-los no sol. Assim os peixes ficavam conservados e poderiam ser comidos mais tarde.
- Bença mãe.
- Deus lhe dê sorte.
A mãe se levantou, lavou as mãos em uma gamela e foi até o fogão de lenha. O fogo já estava apagado. A mãe providenciou umas felpas e o reacendeu. O fogão tinha uma chapa de ferro onde se abriam duas bocas. Em uma das bocas estava a chaleira com café, na outra, uma panela com água. Logo a mãe abanava o fogo. Pouco depois as achas ardiam.
- Tome aqui a água morna. Lave o rosto e escove os dentes.
O menino subiu no pilão encostado à janela do quintal e começou a lavar a cara e a escovar os dentes, quando viu, no quintal, certa movimentação. Ficou curioso e disse à mãe que ia ali e voltava já.
- Ali, onde, mocinho?
- Pai tá ali no quintal. Vou ajudar ele.
- Venha tomar seu café.
- Mais logo eu venho.
Desceu a escada de pedras correndo e logo estava lá.
Anjinho gostava de ajudar o pai. Queria tanto que o pai gostasse dele. Mas o homem era duro. Um tipo difícil que não ouvia ninguém. O menino ia a casa pegar uma bacia que o pai pedia. Ia pegar uma faca que o pai esquecia. Ia levar um recado. Ia dizer à mãe que o pai disse para fazer isso e aquilo. E o diabo do traste nem se comovia. Fazer o que, senhor?
Logo o menino voltou correndo.
- Pai pediu a peixeira, mãe.
- Qual das duas.
- A grandona que tem bainha.
Anjinho fazia tudo correndo. Talvez tivesse medo de que o pai o chamasse de lerdo e lhe desse um carão na frente dos outros.
- Agora vá buscar uns baldes de água e encha este caldeirão aqui.
Ele ia correndo e voltava rápido. Logo o grande vasilhame estava cheio.
- O fogo? Vai pegar fogo, rápido. Parece que é lerdo!
Ia correndo e retornava voando.
- Aqui o fosco, pai.
- O machado. Cadê o machado que você não trouxe? Vai, vai buscar, rápido!
E lá ia Anjinho fazer tudo o que o pai mandava.
De repente, o menino levou um susto. Ele viu que Porquinho, seu Porquinho de estimação, estava preso pelo pescoço no tronco de uma bananeira nanica.
Ele aproximou-se mais do pai e o cutucou, morrendo de medo que o pai reclamasse.
- Pai, pai, Porquinho tá preso.
- Vai pra casa, menino!
O pai não sabia que aquele era o Porquinho do menino. O pai não sabia. Nem sabia que o nome dele era Porquinho. Talvez nem soubesse o nome do menino.
- Faça isso, menino! Vai buscar isso, menino! Pare com isso, menino! Quer apanhar, menino?
O pai olhou o menino e o mandou ir para casa.
Anjinho era um menino obediente. Obediente até demais. Diabo de menino obediente! Para que tanta obediência? Foi andando para casa, triste. Nessa hora, como se ouvisse um sopro de voz distante, ele parou. Olhou na direção onde seu pai e seu Porquinho estavam, e viu. Viu mas ficou parado, sem ação. Se não fosse a providência, que lhe colocou uma formiga de fogo sob o pé descalço, e esta não o ferroasse de jeito, até hoje estaria lá, parado. Rápido, pulou atrás de uma touceira de bananeira.
Porquinho, amarrado num tronco, imóvel. O pai levantou o machado e desceu-o com toda a fúria sobre a cabeça do bichinho. Bateu com as costas do machado bem na cabeça. Imediatamente, em meio à tontice do animal, o pai, já com a peixeira em punho, enterrou-a toda na garganta. Segurou-a um pouco enfiada, torceu-a e logo a retirou. Anjinho viu o sangue do seu amiguinho jorrar dentro da bacia.
- Pra não esperdiçar o sangue do bicho, que é bom.
Tudo parou, o menino não ouviu mais nada. Apenas sentiu no seu pesadelo a grande impotência. Porquinho não se debatia mais. Rápido o pai o pôs no grande caldeirão de água escaldante.
O homem gritou para a mulher:
- Pronto. Agora é só pelar o bicho. Cortar o bicho. Arrancar as vísceras do bicho. Separar as partes do bicho. E comer a carne boa do bicho.
Anjinho, caído no chão, entre as folhas secas de bananeira, não sentiu as picadas das formigas de fogo, que já avançavam, tomando todo o seu corpo. Ele apenas soluçava baixinho, e dizia o nome do seu amigo:
- Porquinho! Meu Porquinho!

Foto de Baby Diana, retirada do Flickr.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Educação sentimental


Naquele ano de 1973, a história registrou a morte de Pequeno. Morreu sem que se soubesse bem a causa. Umas dores surgiram do nada, intensificaram-se e o levaram. Dona Rosa chorou a perda do marido, alimentando o hábito milenar. Suponho tenha sido também o hábito o que a levou à cova, a fazer companhia ao marido, meses após a morte deste. Os filhos do casal sofreram, a ponto de um deles, a Mirinha, intentar contra a própria vida, pretendendo atirar-se no buraco onde jazia sua progenitora.
- Não faça isso, Mirinha – aconselhavam-na os mais lúcidos – Tem a vida pela frente. Filhos a cuidar. Marido. Enfim, uma vida.
Cedeu às súplicas e não se matou. Atitude acertada, pois logo estava às voltas com Sinézio, seu marido, que se enrabichou por uma menina da Rua do Campo. O desejo de matar rapidamente tomou outra feição e outro rumo. Mirinha deu a andar armada de faca.
- Vou retalhar aquela vagabunda!
Mas não é este o rumo que quero dar a esta história. Triângulo amoroso em romance é motivo vulgar. Vamos à morte de Pequeno.
Pequeno morreu, é fato. Otaviano fez-lhe o caixão. Seis tábuas compradas na venda de seu João Celi, mais tecido roxo para forrar o caixão pelo lado de fora, cambraia branca para a parte interna, pregos duas e meia por dez, alças, uns emblemas prateados: crucifixos, estrelas, anjos e... Basta! Morre com luxo quem pode. As coisas estão pela hora da morte. E mais essa de certidão de óbito! A cachaça, sim, é necessária.
O enterro foi marcado para o dia seguinte, pela manhã.
Uma dúzia de alunos estaria em aula nesse turno. Como é de se supor, todos os alunos, em sinal de respeito e para prestar exéquias ao morto, deviam estar presentes no cemitério.
Mas deixe estar que um dos alunos, o Hércules, justamente nesse dia resolveu ficar em casa e dormir até mais tarde. Ou teria ele fugido de uma lição que não estudou? Quem sabe não era dia de sabatina. Pensassem o que quisessem, o fato é que ele não compareceu nem à aula nem ao enterro.
Com a professora Beatriz dia de sabatina era qualquer dia. E a enterro todos eram obrigados a estar presentes. Será possível que todos não sabiam disso?
A falta de Hércules foi visível. Bastou a professora percorrer as carteiras com os olhos e logo percebeu o faltante. Caderneta à mão, iniciou a chamada.
Ficou registrada a falta do senhor Hércules.
Pulemos o resto do dia: a liberação dos alunos mais cedo para irem ao enterro, as lágrimas e os ais pungentes de Mirinha, que, neste ponto, queria se matar. Coisa do passado. Pulemos até os pensamentos que a professora Beatriz dedicou a seu pupilo. Ele era já um rapaz, claro, e se dava muito bem com a professora. Mas o que ela não podia mesmo era deixar de dar o exemplo. Além do mais, ele merece o castigo, se só anda com a Neirinha para cima e para baixo, metidos nos becos. Lambisgoia oferecida. Ele bem poderia dedicar seu tempo ao estudo. Moço bonito... A professora o considera muito. Mas, como já foi dito, a falta é imperdoável. Ele que a aguardasse amanhã.
Como os amanhãs no tempo literário não obedecem a calendário, eis que aquele tão esperado amanhã se tornou um presente. Dolorido para o rapaz.
Bem cedinho, como não era do costume da professora, ela chegou à escola. Mas no caminho não teve pressa. Deu bons dias simpáticos aos madrugadores. Conjecturou de si para si que Aldeia da Purificação era um atraso e que continuaria um atraso, tão pouco havia progredido a cidade.
- Cidade! Hum! – questionou o status do lugar. – Isto aqui não passa mesmo de uma aldeia, velha desde sua origem, parada no tempo colonial. Onde já se viu coisa parecida: meninos fazendo necessidades e limpando-se com folhas de mato e tocos de pau. Um atraso. Nem água encanada, nem luz elétrica. Diabo de lugar!
Zangou-se a professora, mas logo desfez o cenho contrariado e acalmou as ideias.
“Mas o clima é bom. A água é natural, da fonte. Todos me consideram e respeitam. Aqui eu sou “a professora”. O título tem peso. Uma inteligência considerável. A palavra final. A mão que educa. Estou acima. Posso olhá-los de cima. Pobres miseráveis. Ignorantes de pai e mãe, e avós maternos e paternos, e de toda a ancestralidade. Calma, Beatriz. Calma”.
- Bom dia, dona Flor. Como vai senhor Dudu? Melhorzinho do furúnculo?
- Bom dia, senhor Bernardo. Não me esqueci do corte de tecido. Ontem mesmo pedi a meu marido que fosse pegar, mas parece que ele não me ouviu. Não, não se preocupe, o José Fernandes é bom menino, só precisa estudar mais, decorar as perguntas. Ontem mesmo foi necessário dar-lhe seis bolos. Imagine o senhor que o ano finda e não conseguiu decorar o que é o rio Amazonas...
- Pode bater professora, pode bater. Aumente os bolo para doze...
Até logo, senhor Bernardo.
Vê-se que os pensamentos da professora eram e são fortes, impõem-se até mesmo sobre a mão deste pobre contador de histórias. Não era minha intenção expor esses detalhes, há pouco o disse, mas o que é um escrevinhador senão um títere na mão das personagens? Saliento que a professora Beatriz existe na carne e no osso, e na feição melancólica que lhe baixa quando se dirige a...
- Eu o proíbo de contar! Proíbo-o!
Bem se vê que a professora Beatriz não é dessas que se deixam conduzir, e...
- Conte os fatos na pele, na casca, da porta para fora de casa. Que tem o povo de saber da poeira sob o tapete?
Ora, ora, ora, que ideias são essas, senhora? Tudo bem, pulemos o que não deve ser dito. Títere, hum...
Os primeiros alunos começaram a chegar. Uns vinham correndo, brincando de triscou pegou. E chegavam suados. A professora fazia uma cara de nojo ao ver os meninos. “Mas que porcos!”. Outros vinham na leseira, conversando com árvores e lagartos. Paulo Afonso é este que acabou de chegar, veio a cavalo, pois o Bebe-Água, onde morava, é longe. Quando o pai o colocou na Escola Ruy Barbosa, o rapazinho não sabia o que era um “A”. Logo era o mais sabido. Decorava tudo direitinho, não comia uma vírgula. Bebeu o rio Amazonas desde a sua nascente, nos Andes, até onde desagua, no Atlântico. Era o orgulho da professora. Menino esforçado. Vinha montado a cavalo, fizesse sol ou chuva. Não faltava. A professora, e logo todos do lugar, tinha-o como bom exemplo. Criou fama, pronto. Os patos e perus que seu Antônio, seu pai, presenteava a professora, ajudavam no progresso do menino. Jajá recepcionou Paulo Afonso assim que a professora Beatriz o apresentou à turma.
- Vou quebrar sua cara lá fora!
- Senhor Wellington, vá ao quadro negro e escreva a palavra “nucleinarsenovanolformiocoestriquinolglicosfosforado” cinquenta vezes.
E lá se ia Jajá passar toda a manhã enrolando no quadro negro.
Mas a professora, no quadro que nos interessa, chegou à escola e esperou os alunos na porta, barrando a entrada, pois só poderiam entrar depois que eles lhe dessem beijinhos.
Novidade, isso. E o povo pensando que a professora Beatriz era má. Má nada! Tão carinhosa com os alunos. Imagine: beijinhos no rosto. Até Jajá, que a odiava tanto, ficou feliz com o beijo e não lavou o rosto aquele dia. Passava a mão, como se para sentir os lábios macios e úmidos da querida professora Beatriz. Fez coisas erradas pensando nela. Descobriu que quanto mais pecaminoso o ato, mais prazeroso ele fica.
Hércules surgiu na rua da escola. Nesse momento o coração da professora deu um...
- Não diga! Não diga! Eu o proíbo!
Diabo! E eu lá sei fazer história de silêncio! Desse jeito é melhor não contar nada. Bem, só nos resta irmos aos fatos, pois fatos são só fatos...
O rapaz chegou e logo se surpreendeu ao ver a professora com o braço esquerdo cruzando a porta.
- Bom dia, professora. Posso entrar?
Ela nem lhe disse nada, simplesmente suspirou fundo, ofertou-lhe o rosto para ser beijado, e em seguida beijou as faces do mocinho.
Preferiria que Beatriz fosse uma Ema, uma Ana, uma Luísa; mas não, é Beatriz, Beatriz, Beatriz. Esse negócio de triângulo amoroso ser motivo vulgar é coisa dela.
- Só o estava esperando. Vamos entrar.
Entraram. A professora fechou a porta. E começou sua aula.
- Como todos sabem, senhor Pequeno faleceu ontem. Em sinal de respeito, encerramos as atividades escolares mais cedo e fomos lhe prestar as últimas homenagens. Todos estávamos presentes. Todos. Todos, exceto o senhor, senhor Hércules.
Cruz credo! Eu é que não queria estar no lugar do rapazinho. A professora virou outra. Aquela doçura que há pouco se desmanchava com os alunos, virou o Diabo. Fuzilava o rapaz com os olhos e lhe apontava o dedo duro.
- Venha até aqui!
O rapaz levantou-se da carteira e caminhou até a mestra. Ela abriu a gaveta de sua carteira e de dentro retirou a palmatória pesada. A palmatória especial, feita de pau-ferro.
- Dê-me sua mão.
O rapaz lha estendeu e aguardou, tremendo (esse “lha” é um lapso, resquício do tempo colonial).
A professora segurou firme a mão do rapaz e, erguendo a palmatória, desceu-a uma, duas, três, quatro, cinco, seis vezes na mão esquerda, que ardia.
- Agora me mostre a outra.
O rapaz mantinha a mão direita atrás das costas, fechada, represando a dor que a outra estava sentindo. Bem poderia, naquela predisposição, socar a professora. Ora, mas que ideia avançada. Quem sabe num futuro próximo... Desarmou-a e estendeu-lha. A professora retomou a contagem:
- E sete, e oito e nove, e dez, e onze, e doze. Uma dúzia! Uma dúzia, para o senhor aprender a nunca mais faltar a enterro de ninguém. Ouviu? Então, por que o senhor faltou ao enterro de senhor Pequeno?
- Foi pai... pai que não deixou. Minha família não se... minha família não se dá com a dele.
- Está bem. Agora pode ir se sentar.
Não vai chorar não, rapaz?
- Vá se ferrar, seu porra!
Vê? A professora está certa. Não respeitam mais ninguém... nem colegas, nem professores, nem mesmo quem lhes bota no mundo... São esses novos, velhos tempos...
A professora, depois desse episódio, ela se...
- Não se atreva! Eu o proíbo!

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

O bêbado e a cruz


Os homens se reuniam no passeio da Igreja de Nossa Senhora das Candeias, para conversar. Conversa trivial e confusa. Mas o assunto parecia já bem definido: Jonzinho, o bêbado, tinha de ir ao cemitério e trazer uma cruz.
– Vai, então vai, quero ver se é homem mesmo, provocou Zé Galo.
– Vou sim. Quer ver eu ir agora? Quer apostar?
– Se você for ao cemitério e trouxer a cruz que está fincada na cova do finado José Barcelos, ganha pinga. Mas, olhe lá hein, traz mesmo, porque se vier de mãos vazias, leva cascudo.
– Um copo cheinho de Pitu? – Jonzinho mediu a cláusula.
– Pitu, Saborosa, Camarão, a seu gosto, mas traga a cruz. E então, vai agora?
– Vou, claro que vou, porque meu nome é João da Silva dos Santos, filho de Artur Oliveira dos Santos e de Altamira da Silva dos Santos. Vou, e vou trazer a cruz do finado Adinoel Malta...
– A de seu José Barcelos, consertou Zé Galo.
– ... porque o meu nome é Jonzinho, filho de...
– Tá, tá, vai logo.
– Por que não serve a cruz do finado Adinoel Malta? – quis saber Jonzinho.
Zé Galo respondeu:
– Morto fresco. Recente. Não sabe que quando uma pessoa morre, demora pra acordar no mundo dos mortos e que depois de acordado assusta-se com os outros mortos e tenta fugir de lá através da cruz? Seu Adinoel Malta, fresquinho, ainda não acordou no mundo dos mortos. Seu José Barcelos, não, este sim, agarra-se à cruz, pra fugir de lá. Ah, e mais, dizem, e eu acredito, o espírito possui o primeiro que arranca a cruz. Por isso esse medo de bulir em cova e cruz de defunto morto; mas, como você é corajoso...
– Bem, então, sendo assim, mereço logo a metade da pinga. O serviço não é pra qualquer um. Trabalho para macho!
– Nada de metade agora. Vai, traz a cruz e tem um copo cheinho. Não se gaba que é homem? Que não tem medo de nada? Que entra no Cemitério Velho, dá risada e provoca finada Detinha? Sorte sua, morta fresca, fosse morta viva no mundo dos mortos...
– Vou, vou, porque sou filho de... e... o meu nome é... – sumiu na escuridão.
– Ele vai mesmo? Responda, Zé Galo: essa história que você contou é verdadeira mesmo? quis saber Noquinho, amedrontado.
– E se Jonzinho for mesmo e na hora der um troço de medo e ficar grudado na cruz? perguntou Nonga.
– Vai nada, garantiu Zé Galo, vai é pra casa dormir. Um frouxo. Nem pela cachaça se arrisca tanto. Bem, até amanhã, mamãe Avani não dorme enquanto não chego.
– Até amanhã, disse Nonga, retirando-se.
– Até amanhã, responderam todos, e bateram para suas casas.

Passava da meia-noite quando um vulto cruzou a passos trôpegos a Praça Dois de Fevereiro e ganhou a Rua Wenceslau Guimarães. Parou na Praça da Matriz, em frente à Igreja. O vulto era Jonzinho, trazia a cruz do finado José Barcelos.
– E é dele mesmo! disse dona Juca no outro dia, verificando a cruz um tanto indignada com a profanação.
A certeza vinha da xilogravura. Dona Juca havia mandado gravar o nome do marido na cruz: José Barcelos de Oliveira.
Zé Galo, quando soube da coragem de Jonzinho, fez questão de pagar a cachaça. Mas, olhe só a novidade, Jonzinho deixou de beber, não assim por um tempo, de vez mesmo. Já o Zé Galo ficou assombrado por não poder pagar a aposta. Dever não lhe parecia boa coisa, ainda mais num caso assim, onde havia morto no meio. Sem falar que o defunto não tolerava bebida. Desse dia em diante, Zé Galo passou a andar assombrado.

sábado, 11 de setembro de 2010

Sob a chuva lá fora


A rua quieta. O carro vermelho parado bem rente ao muro vizinho. O gato “Lord” sobre o muro. Começou a chover fininho. O vento agitava com leveza as folhas da roseira branca de Lídia, que àquela noite ainda não voltara para casa. A chuva começou a cair mais forte e o ruído que fez sobre o carro vermelho parado bem rente ao muro vizinho não incomodou o sono de ninguém. A água da chuva fez um córrego bem no meio da rua. Um pedaço de papel foi levado pela água e foi se desviando de pequenos obstáculos. Destino trágico. A boca negra do bueiro o engoliu faminta. O vento ficou bravo de repente e deu um safanão na roseira branca de Lídia e ela esbateu-se contra o muro. Coitadinha. A luz cor de bronze do poste tremeluziu. De repente, a constatação: a casa do vizinho estava morrendo, de tristeza. Aquela, encostada à casa de Lídia. Suas paredes tão frias! Todo o tempo fechada e nenhuma voz a lhe humanizar. Morria sem gemidos, resignada. A casa de Lídia era amarela, na varanda havia plantas nos caqueiros e no teto balançava um bebedouro de passarinho. Sua borda era vermelha e florida. O portão da casa de Lídia era branco e de ferro. Quando aberto, emitia uma risada. Mas naquele momento ele estava com feição preocupada. Vez ou outra espichava os olhos para fora, ver se Lídia já vinha descendo a rua. Mas a maior parte do tempo ele preocupava-se mesmo era com a segurança da casa. O outro portão, o da casa colada à casa de Lídia, era de madeira e já não esperava ninguém. Outrora fora alegre e muito receptível. Nos vincos de sua madeira apodrecida, a memória de um senhor e uma senhora já velhos que mudaram de casa. Nunca mais voltariam. A partir daí teve início a morte lenta desse portão. – E esta chuva que não passa. Deus queira, Lídia tenha levado a sua sombrinha japonesa e automática que faz “flop!” quando se abre – o homem pensou – Lídia é prevenida. Marluce também toma lá os seus cuidados, mas a sua sombrinha não tem o mesmo espírito alegre que tem o da sombrinha de Lídia. Não se compara. Por esse momento um vulto surgiu crescendo na parede da sala, onde o homem se encontrava, encostado à janela. Era Marluce. – Você não vem dormir? O homem não se assustou com a presença furtiva da mulher. Não era raro ela invadir os seus pensamentos. – Olhe só esta chuva – ele disse. – Vou deitar – disse a mulher, e sua sombra foi-se escorregando pela parede, sumindo-se pelo corredor. Outra vez só, com seus pensamentos e aflições, o homem ansiava por ver Lídia descer a rua, abrir o portão e a porta de casa. Precisava ter a certeza de que ela chegaria bem. Minutos se passaram. O sono já lhe fechava os olhos. – Paciência – ele disse, já dando os primeiros passos em direção ao quarto, onde, com certeza, sua mulher já passeava por sonhos distantes. Mas algo lhe disse para esperar mais um pouco, pois logo Lídia surgiria lá em cima, talvez meio ensopada de chuva, e o portão se abriria com sua habitual risada. – Sim, sim – ele agora tinha certeza, Lídia descia a rua. A sombrinha pequena esforçava-se para proteger sua dona. Não era possível ouvir os passos de Lídia, mas dentro do coração do homem algo começou a bater mais forte. Lídia abriu o portão e ele sorriu. O homem escondido na janela também sorriu tranqüilo. Poderia, enfim, ir dormir. Mas antes, olhou mais uma vez a rua. A água da chuva começou a cair com mais intensidade. Um sentimento, que o homem não compreendeu, perpassou-lhe a alma. Pungentes gotas de chuva caíam sobre o vermelho metálico do carro encostado ao muro da casa defronte. Parecia haver se instaurado um tumulto na solidão das criaturas frias, quase mortas, daquela rua.

Foto: "Portão de ferro", por Mónica (Monguinhas), retirada do Flickr.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Amor passageiro


Lembro-me de um amor que tive. O seu nome era... Ah! faz tanto tempo, esqueci. Mas não esqueci quando a vi pela primeira vez. Ela vinha do colégio. Eu, sentado à porta de minha casa, fazendo absolutamente nada — talvez olhasse nuvens —, ao vê-la, senti o coração descompassar. Pensei em chamar mamãe, quem sabe uma doença não me atacasse, aqueles ventos de antigamente... mas não o fiz, deixei-me ficar a contemplá-la, enquanto o cavalo do meu amor pisava potoc, potoc, o meu coração.
Pergunto-me o que pode amar um menino numa menina. Não esses meninos de hoje, os meninos do meu tempo. Ah, eu bem sei. Amava a beleza da menina, um jeitinho feminino qualquer. Amava o intocável, as expressões caras que eram guardadas como se fossem um tesouro. Amava o que nelas não se declarava, mas apenas o que se insinuava nas entrelinhas do seu pronunciamento. Amava as meninas pelo o que elas eram: apenas meninas.
Mas é sempre aí, em meio ao mais sublime amor, que surge um demônio: a paixão, este amor afogueado que queima o ventre. O que era céu, nuvens, flores, de repente se transformou em chão, terra, lama; para ser mais exato, esteira.
Na esteira eu e Rita nos amamos. Não, Rita não era a menina que eu amava. Rita, eu a odiava. Porque foi Rita quem galopou o cavalo do meu amor. Pior que isso, foi Rita quem dissipou a nuvem, o céu e as estrelas do mundo do meu amor por aquela menina. Não sei se odiei esta minha paixão por Rita justamente por ela ter extinguido a outra mais sublime. Ou se simplesmente odiei esta minha paixão pelo simples fato de amar Rita demais. Eu não sei. Nunca pude saber. Um e outro amor passaram. A menina mudou-se para outra cidade; Rita casou-se com Antenor e foi morar na roça; e eu, eu fiquei das lembranças daqueles dois amores, que foram os primeiros da minha vida. Outros maiores e melhores os tive, mas, para que dizer, ou desdizer dos primeiros, não é sempre o último o primeiro, o maior e melhor de todos os amores?


Foto: Porto Pequeno de Barcelos do Sul, por Endel Nascimento.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

O ensaio da viúva


O marido morreu, graças a Deus. Fazia anos que ela estava só, tinha-o ao seu lado, é verdade, mas, acredite, jura por Deus, a separação de corpos vinha já há mais de dez anos. Muito tempo de seca, de calores insuportáveis, de ansiedade; vontade de sair correndo, de passear por algum lugar lindo que nunca conheceu; ir à praia... afogar-se... Por muito tempo suportou este estado e o marido, que, agora, louvado seja Deus, está junto do Pai, ou, então, jogado lá no último círculo. O cara era mau. Imagine você que, por diversas vezes, espalhou aos quatro ventos que havia... ah, feito coisas imorais com ela, coisas que se faz mas não se diz, um cretino!
Conheceu Januário no enterro. Não foi nada premeditado, ele chegou e disse que sentia muito. O Osvaldo era boa pessoa, e que bom amigo! disse com os olhos colados na boca de Dora. Todos da mesma laia, amigos de copo, ela pensou. Mas foi o hálito dele. Foi o hálito cheirando a cravo, bafejado na cara dela, o que a excitou. Nossa, mas deu um calor! Começou a passar mal. Deve ser por causa do Osvaldo, coitadinha, lamentou a irmã do peste morto. Mal sabia a cunhada que estava ali, em sua frente, o verdadeiro homem da vida de Dora.
Mas não pense que foi tudo assim tão rápido. Não foi não. Primeiro ele foi visitá-la, uma semana depois. Nesse meio tempo ela descobriu telefone; endereço; nome de mãe, ainda viva; o pai, morto faz tempo; se o signo dele, escorpião, combinava com o dela, libra; se era casado... repare como deu pulos de alegria, separado, se-pa-ra-do. Ai, graças a Deus, o vento sopra a meu favor, disse ela aspirando fundo. E, quando menos esperava, adivinhe quem bate à porta?
— Aqui mora Doralice dos S. de Jesus?
— Sim, sou eu.
O rapazinho que trazia as flores marcou um xis no livro e mandou assinar. No meio das flores um cartão.
“Dora, a vida é como estas flores: alegre e colorida, mas precisamos aproveitá-la enquanto houver viço, cor e perfume, pois um dia a vida, assim como as flores, murchará. Você tem viço, você tem cor, você tem perfume. Carpe diem! PS: meu telefone é 3324-..., me ligue. Do amigo de todas as horas, Januário.”
No mesmo dia falou com Januário pelo telefone. Mas, confessa, tremeu. Parecia uma mocinha na expectativa do primeiro beijo. Bem, é compreensível, dez anos não são dez dias, desaprende-se. Que nada! pensou, encorajando-se, deve ser que nem andar de bicicleta: a gente nunca esquece.
— Alô!
— Alô! respondeu uma voz de mulher.
— É da casa do Januário?
— Sim.
— Ele está?
— Quem quer falar?
— Uma amiga.
— Não, senhora, ele não está. Quer deixar recado?
— Não, muito obrigada, e desligou rápido. Diabo! Se não está em casa para que pergunta quem é?
Manhã e tarde pensando no Januário. Pensando em ligar de novo; em quem seria a mulher no telefone; em esquecê-lo; em... liga de uma vez.
— Alô! do outro lado voz de homem.
— Alô! Por favor, começou com uma voz educada e sexy que sabia fazer, o Januário se encontra?
— Ele.
— Oi, Januário, aqui é Dora, Doralice.
— Dora? Doralice? Ah! Oi, Dora. Poxa, mas que alegria falar com você. E aí, gostou das...?
— Adorei! São lindas!
— Não tão lindas quanto você, mas...
— Ah, deixa disso, está sendo delicado... e...
— ... ! ? : ... ... .
— ? ; ; ; ... : .
Essas coisas que todo casal de namorados conversa. Nesse mesmo dia, de noite, ele foi a sua casa. Ela, preocupada com a vizinhança. O que não dirá esse povo... O marido, morto fresquinho e a viúva já pegando fogo na cama com outro. Poxa, mas que droga! Não queria contar assim, dizendo logo que foram pra cama, mas você, leitor/leitora, querido/querida, há de compreender a aflição de uma mulher que... pelo amor de Deus, mais de dez anos na seca. Não resistiu ao cheiro da loção de barba, o cheiro de homem, o aroma de cravo na boca. Como dizem as mocinhas de hoje: gamou. Será que é assim que ainda falam? Bem, o fato é que não agüentou e deu logo. Mas não foi assim tão fácil, foi não. Mulher desacostumada em ver homem nu; pior, em ficar nua diante de homem, preocupada com o corpo que já não era o de nenhuma mocinha... afligiu-se.
— Ah, deixa disso! Vamos, por que a vergonha? Seu corpo é lindo. Estou doido para ver, ele disse com cara de safado. Ela sonhava com um homem que tivesse essa cara! Que aperta os olhos assim... que tem bigodinho... a cara tremendamente cínica e... Clarke Gable! Clarke Gable! Aquele ator que ela acha lindo de E o Vento Levou. Januário por um momento foi o Clarke Gable da vida dela e ela a Scarlett O’Hara da dele.
— Hum, doido mesmo, isso sim é o que você é, disse bem perto da boca dele, a voz sumida, fraquinha, rouquinha, os braços no pescoço dele; ele já com as duas mãos na bunda dela. Quanta carne! ele disse. Isto é o que se pode chamar de abundância. Veja como é safado!
— A luz, apagar, ela disse, compulsivamente nervosa.
— Olhe só para você, ele reparou, está roendo as unhas.
— Vou apagar a luz.
Apagou.
Acenda a luz, disse ela depois de tudo. Com a luz acesa foi descobrindo, aos poucos, seu corpo de sob o lençol. Jura, jura por Deus, essa foi sua maior ousadia: mostrar o corpo nu para um homem, quase um estranho, na cabeça um amante, esta foi a maior ousadia de sua vida. E já não estava mais temerosa, ansiosa ou nervosa. Não, estava séria, compenetrada. Alguma coisa mudou nela depois que mostrou o corpo nu para Januário. E isso ficou bem claro quando ela disse:
— Me chame de coisa ruim, me xingue, me esculhambe.
— Quê?! Ora, Dora, mas que doideira é essa?
— Quero que me chame de uma coisa.
— De que, minha florzinha?
— Não, florzinha não. Quero que me chame de puta.
— Ah, Dora, deixa disso, vai, ele deu pra trás.
— Faz coisa errada comigo, Januário, faz, pediu com lágrimas nos olhos.
— Não vou fazer isso, Dora, respeito você e...
— Então vai embora! Vai embora! Sai daqui! ela mandou, gritando.
Com cara de quem não entendeu nada, ele saiu. Durante muito tempo Dora ficou na cama se cobrindo e se descobrindo, lentamente.
O retrato de Osvaldo ainda está na parede. Dora perde horas olhando para ele. Dá voltas silenciosas pela sala, quer que ele veja como ela está, se bonita no vestido preto.
— Quer que me dispa? pergunta ao marido morto no retrato.

— Quer que me dispa?

— Quer que me dispa?




Ilustração de Scheckter Barreto e Ed Almeida.

sábado, 5 de junho de 2010

Lembrança de um amigo distante


Carlinhos era meu melhor amigo. Eu era o melhor amigo de Carlinhos. Um dia nos apaixonamos pela mesma menina. Então Carlinhos e eu brigamos. Carlinhos passou a ser meu pior inimigo. Eu passei a ser o pior inimigo de Carlinhos. Mas, como não bastasse apenas sermos inimigos declarados, provocamos um duelo. Fazia-se necessário saber qual de nós era o mais forte.

Carlinhos era um menino muito magro. Não fiquei intimidado quando arregaçou a manga da camisa e me mostrou seu muque. Em resposta mostrei-lhe o dedo médio, bastante rígido. Foram contar a meu pai que eu dera o dedo para Carlinhos. Por conta disso levei uma surra.

Meu pai me batia sempre com o seu velho cinturão de couro. Pude sentir com os dedos as marcas decalcadas nas minhas costas. O meu pai nunca me batera tão forte assim antes. A partir daí criou-se em mim um ódio especial por Carlinhos. Ódio que antes jamais sentira por alguém e, agora, posso dizer, nem mesmo depois.

Zelito, o novo melhor amigo de Carlinhos, veio me dizer o local.

— Atrás da igreja. Daqui a pouco.

Vou acabar com ele. Acabo com você também.

Então vai ser você contra nós dois.

Fui eu contra eles dois. Apanhei de Zelito. Bati muito em Carlinhos. Porrada especial foi um murro que lhe acertei na cabeça. Gabei-me desse murro. Dona Zica, a mãe de Carlinhos, ficou indignada quando soube da briga.

Ora, meu Deus, mas eram tão amigos!

“Eram”, respondi. “Eram”, 3a pessoa do plural do verbo ser; pretérito “imperfeito”. Dei-lhe as costas.

Ora, mas como “é” estúpido. “É”, 3a pessoa do singular do verbo ser, presente do indicativo. Hum!

Naquele tempo sabíamos conjugar verbos.

Namorei a menina alguns dias. Mas a conjugação parece que não foi perfeita e o namoro acabou. Carlinhos foi morar em outra cidade e isso faz... faz talvez uns vinte e sete anos. Nunca mais nos vimos. Soube que Carlinhos enveredou-se no mundo das drogas. Triste.

Engraçado. O que me faz escrever não é a lembrança de um amigo. Lembrança distante porém tão viva e rica em detalhes na minha memória. O que me faz escrever é o esquecimento. Esquecimento de um amor que foi maior que a amizade. Amor que não deixou marcas no meu coração. Amor que o tempo apagou.

O que me faz escrever, inesquecível amigo Carlinhos, é o nome. Me diga aí, meu velho, qual era mesmo o nome da menina?

domingo, 16 de maio de 2010

A arma de cada um


– Eu andava solteiro, aí conheci a Diva, mulher bonita, loura, os homens endoideciam ao vê-la passar pelas ruas de Cruz das Almas. Mas Diva era uma dessas mulheres, como se diz, perdidas. Ganhava a vida assim, indo com um e com outro. Contudo, não se gastava, conservava o charme, a altivez, a postura. Sabe aquela atriz do cinema americano, a Marilyn Monroe? A Diva parecia-se com ela. Mulher bonita!
– Quem? A Marilyn?
– Também, também, mas a Diva... ah, bonita igual a ela, nunca vi.
– E o que aconteceu com a Diva?
– Tirei-a da rua. Levei-a para morar comigo.
– Casou-se com uma mulher da vida?!
– Casei-me. Ficamos juntos um ano e seis meses. Pensei que a Diva endireitava, mas... sei lá... talvez o destino de certas mulheres seja levar essa vida mesmo. A Diva me traiu com o Nestor. Peguei-os na minha cama. Dupla infeliz.
– E você, o que fez? Matou-os?
– Nada! Ia lá me sujar com dois perdidos!
– E então?
– “Vistam-se,” disse-lhes, firme. “Vamos, rapaz, não tenha medo. Não vou te matar.” O cabra ficou assustado, tremia igual vara verde. “Venha tomar café, você deve...”
– Convidou-o para tomar café?!
– Foi o que eu disse.
– “Venha tomar café. Você deve estar muito cansado, precisa alimentar-se. Venha, vamos à mesa. Você também, Diva.”
– Foram à mesa comigo. Botei-os na minha frente. Não se pode confiar, gente que trai é um perigo. Botei-os na minha frente. Apontava o revólver para os dois.
– Revólver?! Você tinha um revólver? Por que não os matou?
– Ah, menino, você ainda é muito novo, não sabe onde reside a sabedoria do homem.
– Eu não sabia que existia a sabedoria do... do...
– Vai, diz. Acostume-se logo com essa palavra. Todo homem tem de estar preparado.
– Eu, hein. Bem, o que fez com os dois?
– Nada.
– Nada?! Você não fez nada?
– Não. Tomaram café. Disse a ele, apenas: “Olhe, rapaz, a Diva vai com você, ela vai ser a sua mulher, e ai de você se fizer algum mal a ela.” Falei isso só para meter medo nele, a Diva era uma pobre coitada. “Levantem-se” disse-lhes. “Tome”, e passei meu revólver a ele.
– Endoideceu!
– Nada. Eu sabia o que fazia. Disse-lhe: “Tome, leve este revólver, você pode precisar. Tem dinheiro para o transporte? Não? Então tome aqui dez contos.” E se foram.
– E aí?
– Aí eu continuei levando minha vida. Até que, um dia, quando eu passava em frente à cadeia de Santo Antônio, alguém chama meu nome.
– “Seu Manuel Jorge, seu Manuel Jorge, lembra-se de mim? O senhor tem um cigarro para me dar?”
– Era o Nestor. Espiava a rua através de uma grade de ferro, retangular e minúscula. Lá estava Nestor, preso. Tirei um maço de Hollywood do bolso, aproximei-me da grade e passei-lhe o cigarro. Perguntei:
– “O que lhe aconteceu, Nestor?”
– “A Diva, seu Manuel, a infeliz fez comigo o que fez com o senhor. Peguei-a na cama com outro; matei os dois com aquele revólver que o senhor me deu. Estou vingado. Estamos vingados.”
– “É, Nestor, estamos vingados”, disse-lhe. E saí andando, livremente.

terça-feira, 11 de maio de 2010

A Bomba


Raimundo Reis, pescador natural de Barcelos do Sul, tinha 34 anos, dois filhos que moravam com a mãe, um pai velho, Sr. Pissica, e, principalmente, tinha a mania de soltar bomba. Eu disse bomba, não bombinha de São João. Bomba, bombona de matar peixe.
Todos sabiam ser crime esse ato, mas nem por isso deixavam de executá-lo. Dentre os pescadores que se destacavam, posso citar Sr. Arivaldo, João do Velho, Senor, que tinha fama de bom mergulhador, Zé do Campo, e Manuel de Fulô. Este, uma vez, foi escarrerado manguezal adentro pelos agentes da Capita­nia dos Portos. Não se emendou. A pesca com bomba era excitante e fácil. E lá estava Manuel de Fulô de novo catando os peixes da superfície. Olhava em to­das as direções para ver se vinha alguém da Marinha e, bum, mergulhava. Lá se ia ele buscar os peixes que não boiavam.
***
Eu tinha nove anos e era doido por refrigerante. Claro, era tão raro tomar que até mesmo quente sorvia-o de bom gosto, e lenta­ment­e, para prolongar o prazer. Ali era raro coisas ge­ladas. Eis porque: primeiro, os moradores não tinham condições de comprar geladeira; segundo, a eletricidade ligava-se às seis horas e desligava-se às dez. Isto é mentira, se bem me recordo desligava-se sempre antes. Uma vez, somente uma vez, exceto nas festas de ano, a luz ficou acesa até de manhãzinha. E isto foi quando seu Caju mor­reu. Seu Caju era o Juiz de Paz; terceiro, pelo já exposto acima, percebe-se que a eletricidade era ge­rada por um motor que alimentava, mal, as trezentas e poucas lâm­padas, contando as dos postes (naquele tempo, ainda de madeira) e as das casas. Assim, se se ligasse uma geladeira, a luz baixava na hora. Mas, sem grande esforço de memória, posso dizer quem tinha geladeira naquele tempo em Barcelos do Sul: seu Caju, o Juiz de Paz, que já morreu nessa história, a sua era a gás e funcionava; meu pai, o Sr. Jocelyn Policarpo da Silva, apelidado Celi, a sua era à eletricidade, e não funcionava; e seu Vavá, dono de um armazém colado à venda de meu pai, na Praça da Matriz, em frente à Igreja. A sua era a gás e trabalhava bem.
Era na Praça da Matriz que eu estava. Tinha algumas moedas e ia tomar um refrige­rante quando, lá em cima, no fim da rua, descendo para a praça, al­gumas pessoas aglomeradas em torno de um homem traziam-no nos braços, em cadeirinha.
Chegaram mais perto.
– Meu Deus! O que terá sido isso? perguntei-me.
– Foi a bomba, alguém respondeu.
– O quê!? Bomba!?
– Onde foi? Como foi? Por que foi? Ele não soltou logo, foi?
Ali estava Raimundo Reis, sentado, parara um pouco de tremer. Eu via com olhos curiosos de menino. Coto­cos, sim, o que eram seus braços agora, só cotocos. Os nervos davam a impressão de que iam pingar, escorrer. No resto do corpo, muitas escoriações. O olho direito ficaria, como ficou, seria­mente danificado, mas os cotocos, meu Deus, jamais esquecerei. Por fim levaram Raimundo Reis para Camamu. De lá ele foi a Salvador. E eu fiquei ali, abobado, repetindo aquele quadro horrível: um ho­mem sentado, olhos esbugalhados e os cotocos com seus nervos pingando. Argh! Foi demais para mim, buliu-me todo por dentro. Mas, o que fazer? Quem procura acha. E, decidido, entrei no armazém de seu Vavá e pedi:
– Seu Vavá, me dê uma gasosa.
Ao que ele prontamente me atendeu. E, já esquecido de tudo, de Raimundo e do mundo, sorvia-a de bom gosto, e lentamente, só para prolongar o prazer.
Raimundo Reis, ironicamente, passou a ser visto por todos do lugar como homem de sorte, pois conseguiu se aposentar por invalidez. Hoje vive feliz com a nova esposa e com o “sigiloso” negócio de explosivos.
Foto "O Poder da Pesca", de joao bambu, retirada do Flickr.

sábado, 8 de maio de 2010

Maria


Para Gerana Damulakis

“Se a alma e o coração sujos estão,
dê ao corpo água e sabão.
Se o lado de fora limpo está,
no lado de dentro fica a impressão.”
Zé de Noite, o cego.

Remontam o caminho de volta os talhos da tiririca, que iam, de um e outro lados, penitenciando-me docemente. Também dos matos, as suas galhas, largadas num debruço, e o sol, no desmaio da tarde, caíam sobre mim.
Ia ao Apicum, onde me aguardava Maria.
Decerto por estas trilhas imaginais sons: os pés chapechapeando a água e a lama; sururus em suas cantigas estaladas; piados longe; chiados; aqui, mais perto, neste canto da memória, o desejo a sofregar: Maria antecipada, Maria distante, Maria nunca mais.
“De pirraça”, disse ela bem à frente, no caminhar da história. “De pirraça e por pura maldade me manda a mãe lavar o sujo da roupa.”
“Maria!”, chamei, a que só olhasse para trás.
Virou-se. Viu-me e sorriu-se toda. Dengosa. Porém, o tempo também aí já é outro, mais tarde, depois de tanto antes nos termos tentado na ignorância sabida do caso. Foi o acaso que nos levou, outras desvariadas vezes, pelas mesmas várzeas do caminho.
No Apicum, Maria acocorada. Da bacia as roupas ia tirando. Os pés n’água. Abeirado a ela, puxei conversa, pois Maria, agora, tão calada, aguava a roupa, concentrada.
Puxei um fio:
“E é de maldade que Dona Esterzinha te manda lavar essa roupa, e sempre a esta hora alta, Maria?”
Respondeu, sem dizer palavra, que sim. E esfregava o vestido com sabão e ódio. Porém dele e dela a nódoa não se soltava.
“Tanta raiva tenho dela!”
“Tem raiva dela não, Maria. É tua mãe.”
“Antes-de-ontem me mandou cortar uma gamela de maturi... Olha só o magoado das mãos.”
“Maciazinha”, disse mentiroso, tocando de leve os talhos da mão.
Maria se recolheu diante do afago, como se fosse moça prometida transgredindo contrato.
“O pai me fez um agrado: me deu um corte de pano. Disse:”
‘É para fazer um vestido para a festa de ano; Nossa Senhora das Candeias merece.’
“O pai é bom. Ele me deu a fazenda e saiu para a pescaria. A mãe, afastada, na fonte, quando voltou e viu o tecido aberto na cama, disse:”
‘Tem dois vestidos do ano passado, Maria.’
‘Mas são desde o ano retrasado, minha mãe; tão ruços’, “disse suplicante.”
‘Este é meu, Maria, só meu’, “e saía feita dona do corte que me dera o pai.”
‘Conto pro pai’, “afrontei”
“A mãe virou-se, já com a bofetada guardada na mão. Chamou-me de atrevida. Juntos, ao pai se faz doce. Mas a mãe tem um fel no coração, amorzinho... Desde então me castiga...”
Maria se lavava no enxaguar da roupa. E esta foi a última vez que a vi animada. Deu-me seu amor por último e estas palavras, que nunca se me saíram:
“Quero morrer... quero morrer...”
Pensei morria por mim, ensandecida pelo fogo do nosso amor. Qual nada! Intenção escrita no pensamento, arma engatilhada.
E foi, que no outro dia, no mesmo marcado encontro, lá fui eu fazer companhia a Maria. Porém Maria não havia mais. Nem pios nem chios. Tudo silencioso, como se aguarda um momento a hora de um outro ver.
“Onde Maria? Terá ela lavado toda a roupa suja e se foi?” intriguei-me.
Mais adiante, num passado marcado, mais lá no fundo do Apicum, onde eram as águas mais profundas e menos confiáveis, eu a vi.
“Maria!”

Fazia-se tarde. O escuro descendo do céu assombrava tudo. Por certo eu não via direito. O corpo dela, assim meio de viés, preso pelos cabelos nas galhas, abandonado no mangue, como se lhe puxasse pelos cabelos a mãe, num último castigo.
“O mal se corta é pela raiz”, diziam os pais duros de antigamente.
Maria ficou em mim, como fica na boca o travo de fruta devez. E nunca me saiu o gosto dela, este grudado na memória e na pele, com toda sua natureza, toda ela no meu eu, este travo que não me sai. Maria.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

A viagem de Adelice


Adelice de Carlinho do Gravatá foi outra. Ficou doida de repente.
Um dia ela vinha com o pai numa canoa. Iam pegar o barco de Tião, que ia para Camamu. O barco parou e a canoa veio se encostando.
— Bom dia, seu Tião.
— Bom dia, Carlinho. Bom-dia, essa menina.
Mas a menina não respondeu. O pai reclamou, chateado. Não dava luxo mas educação dava sim senhor.
— Adelice, minha filha, dê bom dia a seu Tião.
— ...
O pai ficou sem graça. Como podia ser isto? Então quer dizer que toda a educação resultou inútil? A menina era orientada em casa a ser educada, principalmente na presença de estranhos. Que disesse bom dia, boa tarde, como vai o senhor, a senhora, por favor, pois não. E agora, ali, logo na presença de seu Tião, Adelice resolveu fazer feio. E como não? Claro que vão comentar:
— A filha de Carlinho, ah, mas que moça mal educada!
E vão pensar logo: o pai não a educa.
— Adelice, minha filha, a senhora não me ouviu? Vamos, dê bom dia a seu Tião.
A menina nem ouvia mais nada. Sentou-se na beira da canoa e olhou para um canto, para outro, para o nada. E de repente começou a rir. Mas ria bobamente, um riso sem sentido. Um riso que aos poucos foi se transformando em choro.
O pai viu aquilo e não se aguentou.
— Minha filha, minha filhinha, o que aconteceu?
O homem era um forte, é certo, mas ele preferia um soco, ou a perda de um braço, uma perna ou outro órgão qualquer, até que fosse a sua própria vida, a ver a filha naquele estado de inércia. Carlinho era um forte, mas depois desse dia Carlinho virou ruína de homem. A filha enlouquecera, constataram todos.
— Vamos, Carlinho, não fique assim que não há de ser nada. Logo passa.
— Não! Não! Com a mãe, minha finada esposa, que Deus a tenha, foi a mesma coisa.
Tião lembrou-se de uns tantos casos de loucura, de trabalho feito, de lua ruim, de vento carregado, mas não falou nada, precisava era seguir viagem.
— Carlinho, pegue sua filha e volte para casa.
O homem apoiou as mãos no bojo do barco de Tião e, empurrando-o, fez com que a canoa se afastasse.
Carlinho sabia que aquela era uma viagem que não tinha volta. O que não podia era embarcar nela. O homem tinha que ter este prumo.

terça-feira, 13 de abril de 2010

Velas no mar


Dois homens bebem no bar de Preto, na praça da Matriz, em frente à igreja. Raimundo Reis é o que está enfezado e a todo instante blasfema.

– Maldito mar! E vira o copo de cachaça.

João do Velho, seu companheiro de pescaria, parece distante dali, os olhos no cachorro, a seus pés. O animal é já bem velho e a qualquer hora embarca.

– Livre-se desse bicho. Tornou-se imprestável, diz Raimundo Reis, tentando acertá-lo com a ponta do pé, enxotando-o por debaixo da mesa.

João do Velho, agora, prestando atenção ao que diz Raimundo Reis, nota o decrépito cão deitado a seus pés. Imagina que logo terá de enterrá-lo, como se faz a um amigo. Não entende o que ainda o mantém vivo. Seu latido, antes rouco, há muito deixou de ser ouvido. Se o chamam pelo nome, mantém o olhar no chão. Parece envergonhado, sem entender por que ainda vive. Às vezes delira, e num surto maluco imagina latir, pular, sorrir balançando o rabo ao seu dono, fazendo-lhe festa, mas não passa de ataque epilético. Treme-se todo e baba. Sem saber o tratamento adequado, derramam-lhe água na boca, sopram-lhe nas narinas. Minutos depois o cão revive, ergue-se cambaleante e caminha sem saber bem para aonde.

– Mas que diabo aconteceu? pergunta Raimundo Reis.

– É que ele está bem velho.

– Ora, vá-se ao diabo, homem! Estou lá me referindo a esse monte de ossos! O que houve com o mar? Onde se meteram os peixes? Isto sim é o que quero saber.

– Amanhã eles voltam, diz-lhe João do Velho, alisando as costelas do animal.

– Amanhã eles voltam, amanhã eles voltam! Ao diabo, você e esse maldito cão! Assim é que não dá!

– O que quer dizer?

– Ora, ora, compadrito! O que quero dizer. Como se não soubesse. Explodi-los. Explodi-los. Isto, sim, é o que quero dizer.

João do Velho grita ao proprietário do bar:

– Preto! Suspenda a bebida deste homem. O traste não tem jeito.

– Mas há um jeito, Raimundo Reis continua. Há jeito para tudo, menos para a morte, é claro. Amanhã mesmo atravessamos o Canal, e lá, na Gerumana, senhor Celso nos fornec...

– Ora, ora, ora, senhor! Então será que já se esqueceu de finado André de Marina do Campo?

– Um tolo, um tolo que não percebeu o momento de soltar.

Bebem calados, por fim, resolvem atravessar o Canal no dia seguinte, bem cedinho, com o céu ainda estrelado. Celso lhes fornecerá o material.

– Preto, aqui o dinheiro da bebida, diz Raimundo Reis. Amanhã é você quem paga, compadrito, e bate no ombro do amigo.

– Até amanhã, então.

– Até amanhã. Leve fogo e cigarro.

– Vem, Amigo, vem, João do Velho chama o seu animal.

Ambos, trôpegos das pernas, seguem para casa. O homem chega primeiro. Parado e com a porta aberta, aguarda o cão entrar. Ele fareja o chão, onde, provavelmente, uma fêmea se agachara e mijou. Sem ter forças para levantar uma das pernas traseiras, agacha-se um pouco e mija na grama.

– Vamos, bicho danado, pare de inventar lembranças.

O animal entra. No corredor, ele pára e olha o móvel à sua frente, onde costuma se deitar. Sem forças para sequer levantar uma das patas, João do Velho ergue-o e acomoda-o na marquesa. O bicho gira três vezes e se arria, batendo os ossos nas tábuas. Não muda a feição séria. Estica as patas à frente e assim permanece.

Vem a noite. João do Velho preocupa-se com o que acontecerá no dia seguinte. Imagina que fará mal à natureza, matando-a sem controle. Quantos peixinhos mortos... quanta vida interrompida... Tragédia. Tragédia. Mas as tainhas são muitas. Todas boiando, prateadas, reluzindo seu drama à luz do sol. Basta lançar a mão e apanhar o peixe. Fácil. Fácil. Umas afundam, mas lá embaixo já está Raimundo Reis, cheio de fôlego, a apanhá-las. Depois de recolhido o peixe, “vamos embora, compadrito, que a pescaria hoje foi boa.” O mar vermelho. Vermelho. Vermelho.

João do Velho acorda no meio da noite. Os olhos maculados de sangue. Mas logo desfaz a impressão do sonho ruim que tivera, e apura o ouvido. Imagina ouvir algum ruído fora do quarto. Fica quieto, só escutando. Define o trincar das tábuas da marquesa. Talvez o animal esteja inquieto. Deve ter tido também um sonho assustador, pois bicho também sonha, um desses pesadelos magníficos que deixam o coitado certo de que o sonhado é realidade. Acorda angustiado, e ninguém é capaz de lhe entender.

Logo, João do Velho pensa que o som é ilusão dos seus sentidos. A luz da lamparina, imóvel. Não projeta sombra nas paredes. O santo sobre o armário, quieto na figura de papel. Tudo parado, como se a apurar o ouvido, para decifrar o que vem de fora.

– Mas não pode ser, João do Velho diz para si.

Levanta-se, abre a porta e vê o animal sentado, a cabeça erguida.

– Ora, mas você não está gemendo, está uivando.

Enquanto João do Velho se recupera do susto que o animal lhe dá, batem na porta.

– João do Velho! Ei, João do Velho! Tá na hora.

É Raimundo Reis. Traz os olhos miúdos de cansaço. Mas a decisão do homem em realizar a travessia é mais forte do que qualquer cansaço. Tudo muito simples: descem a ladeira do porto, pegam a canoa apoitada na beira do rio Barcelos, remam até à Coroa, e daí à Ilha da Gerumana é um pulo. Senhor Celso os espera com as bananas embrulhadas em um pacote. Os olhos sempre atentos à tamanca dos homens da Capitania dos Portos, que é mais veloz que os barcos tóc-tóc. Tudo tranqüilo, nada de embarcação à vista, tome lá o dinheiro, dê-me cá o pacote. E pronto.

– Não vou! João do Velho diz decidido.

– Ora, ora, compadrito, como assim “não vou.” Que história é essa?

– É o Amigo, deu para uivar de repente, e logo ele, que há anos não emite um ruído.

– Bom, bom, sinal de que a estrada do infeliz se alonga.

– E a sua, Raimundo Reis? E a sua? Por que entrar nessa barca furada?

– Ê, é o diabo. Não me venha com essa conversa de mulher casada. E eu lá tenho rabo de saia!

– Não vou. Não posso ir. Esta é a minha decisão. Peço que você também não vá.

– Ora, ora, compadrito, não venha me dizer que vai abandonar a pescaria por causa de um saco de ossos.

João do Velho não dá resposta ao amigo. Pensa em lhe rogar que abandone a travessia do Canal, pois não prevê coisa boa na Gerumana. Mas nada lhe diz. Quando procura o amigo, não o vê mais.

– Ele se foi.

Amanhece. O galo canta num terreiro distante. João do Velho alisa a cabeça ossuda do animal, que agora está quieto. João do Velho sente frio e abraça-se. Pensa na cama quentinha. Levanta-se. Ao abrir a porta do quarto, um vento delicado entra e desfaz a última chama da lamparina.

domingo, 4 de abril de 2010

ALVORADA


Enamoravam-se. Não dos sabidos modos das gentes grandes. Que, também, estas, assim não de forma direta, enrolam os meios feito cipós. Nada dizem, mas, no não dizer, tudo dizem. Entendimento mais doido! Entendem-se. Assim meio bichinhos no farejar do amor.

Quero dizer que sim: enamoravam-se os dois. Porém, olhe só o descabimento! Manuelito de Dasdores, bicho mais feio se tirando de bonito, e logo para cima dela, Nióbe, toda do outro moço, Neco, já enamorada. Mas isso foi quando meninos, cheirando a leite.

Bichinhavam-se. Certos e incertos do amor e das quizilas, emaranhavam-se por caminhos de fontes, rios e matos.

Nhô Manuelito, bicho feio, arrepare que te mato.”

E no bojo do outro, Neco caía feito bicho, todo armado de unhas e dentes. Tudo pelo amor, só existido em sonho, e dormido, pela menina “Nióbe, que é bonita”, e ninguém supõe essa arte. Só Deus, este criador, que entre um bocejar e outro vai tecelando artifícios.

– E façam-se crescidos, Ele diz. E num momento aquela mangueirinha de antes nunca vista, arvoreceu. As paredes da casa, ontem apenas caiadas, Rosaram-se. E toda a gente, até Manuelito, que Deus, por engenhosidade nunca mata, tudo Deus coloriu, modificou, cresceu...

Nióbe bonitona, cheiosa. Neco um tipo fortão, de remar. Manuelito, nem digo, para desgraça de Neco, agigantou-se. Até que ela, a moça Nióbe, a Manuelito ofereceu um olhar derramado, certa feita. Foi quando suspirou:

“Tão fortão o Manuelito; iche que arrepio toda!”

Desde então Nióbe teve os olhos despertados para este moço.

Hum, Neco logo se arrochou. Não de forma amostrada, ocultos os músculos, escondida no canto do olho uma outra arte, maliciosa:

“Peixeirinha, peixeirona.”

E foi lá na rua do lado de lá que aconteceu um baile. Casa de seu Nezito.

“Me concede a honra dessa dança, Dadinha?”

Dadinha toda se vai dançar com o moço que a convida.

“Desafastada! Desafastada!”, recomendara o pai que a filha dançasse, pela honra, que é só o que pobre e moça têm.

Mais tarde, festa rolada, regada à bebida, moços empolgados, afogueados, a homens todos tirados.

“Dança essa dança, Nióbe?”, pergunta Manuelito. Desconcedido o pedido, se já tão cansadinha a moça, se suara todo um disco com Neco, por vontade e gosto dela e dele; um caco, ela.

Mas Neco, Neco, diabo de premeditação! Bebeu no intento, o Cão.

Nióbe descansada no banquinho. Do outro lado da sala Neco nem diz. Diz, só no olhar:

“Vem dançar com eu.”

“Mas Neco, fui chamada ind’agora.” ressalva ela.

“Chamou, quem, e eu, fui?”

“Neco, Neco, fui chamada pelo Manuelito e não fui; isso dá briga.”

“Adiante, adiante.”

Nada mais dizem. Já dançam pela sala.

“Então é assim, sinhá falsa?” alto diz o moço Manuelito, já apegado no bracinho de Nióbe, repuxando-o.

“Desafasta! Desafasta!”, diz, abrindo os braços, Neco.

“Desafasta! Desafasta!”, dizem todos, abrindo.

Na sala apenas Neco e Manuelito; Nióbe entre eles.

Neco puxa a faca.

“Peixeirinha, peixeirona.”

Manuelito não se acovarda, não. Abre as pernas, ginga o corpo. Um golpe, um bote, coisa assim parecida. Atarantada, a moça, no meio.

Manuelito larga o pé. Neco avança. Entre os dois, a moça. Neco enfia a faca, albiventre de virgem, sangrado.

Branquirubra, Nióbe jaz.


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Maraú - Sunset at Algodões River

sábado, 27 de março de 2010

O CORPO


Descontinuariam a festa por causa da morte de Romildo? Tomara vivalma não se lhe dê conta. Achado, decerto não haverá festividade. É costume do povo, que é respeitoso, não demonstrar alegria quando parte um irmão. É uma cumplicidade de dor, como quando o amigo se vai, deixando saudade colada à lembrança. Quem não se lembra de Seu Aniceto de dona Carmélia? Expirou no Jardim das Flores, mas lá, sem campo-santo, veio às carreiras ser enterrado em Barcelos. No dia do sepultamento, uma bebedeira no bar de Preto. A radiola alta. Mas, pronto, bastou o povo avistar o cortejo lá em cima, no Mirante, ligeiro o som silenciou. Quem estava de chapéu, sacou-o fora. Todos persignaram-se e fizeram o sinal-da-cruz em reverência. Um cujo abriu caminho para o dito:

“Vá com Deus, meu irmão.”

E logo todos o seguiram:

“Vá com Deus.”

Indo.

O sino principiou a bater na igreja de Nossa Senhora das Candeias. Anunciava a morte e convocava o povo para o cortejo. Quem ouvisse a trágica canção, logo fazia a leitura:

“Vixe, meu Deus, morreu um’alma, e não miúda, de anjo; pelo ritmado do badalo... o alteado... gente grande.”

Porém, o povo queria a dança, a cachaça, a esfregação, a safadeza, a putaria. Trezentos e sessenta e cinco dias na folhinha subtraídos, um a um, do levantar ao cair do sol, os dias compridos. Tão aguardada festa! Pois bem. Romildo que ficasse lá. Quem mandou subir em árvore? Pegar passarinho a mão? Eis o que se deu: despencou lá de cima. E cá embaixo, nas estacas, o corpo cravado. Alguém, sem coração, dirá depois:

“Quem lhe tem pena? Estragar a festa... Vá ser azarado assim no inferno!”

Olhe o diabo: dona Branca, mulher de Seu Miguel de dona Rola, havia-o de ver. Um mal estar a levou aos matos, arrancar folhinhas de chá. Bateu os olhos no corpo de Romildo. Diria, não diria, apodreça até amanhã! Nem isso pensou. Deu a gritar. Gritos de morte. Diferenciados das batidas no anúncio de alguém já morto. Aí o momento é desigual. Diferente do sino que já bate consciencioso da morte. O grito de dona Branca declarava o exato momento do antecipado confronto. Pois quem morre, mata muitas vezes, até aquietar-se sob o terreno da memória, o defunto. É uma cadeia que se sucede. Primeiro, o morto original, e, no justo instante, dona Branca de Seu Miguel de dona Rola, mais logo todo o mundo a morrer mais um bocadinho. Todos com o seu quinhão da Dona Fatídica. Até o morto, o de verdade, ser enterrado de vez. E, ainda assim, mesmo depois de amanhã e mais, mesmo sob o chão lacrado, às vezes, na lembrança vem, como alva garça, avoada a alma matar um pouco quem vive. E como apossa-se-lhe suave no pouso! Mas cravam-se-lhe as unhas na alma, irmão. A gente chora que doem os ossos. É costume da gente se lembrar, gostar de se matar, avivando o sofrer.

Por esse então, a gente embriaga-se toda. Um motivo tem: se há dor, é preciso esquecer. E, na bebedeira, os motivos se confundem, os objetivos tornam-se desvirtuados, os braços se agarram a tudo, pois a tontice é muita, e as pernas, tantas embaralhadas, assim vão-se a valsar essa dança doida de bêbado.

A gente concorda em fechar os olhos diante do morto. Gente, pois não somente dona Branca de Seu Miguel de dona Rola o viu, assim como Zeca da Biriba, Manuel do Brejo, o rapaz que se enamora de Dadinha, e quem mais, só Deus sabe! Que mundo, este!... Bem, o fato é que, resolvido, sem encontro marcado, ficou tudo conforme: ninguém viu o corpo de Romildo enfiado nas estacas. Foi tudo assim como se concluíssem: os mortos, aos mortos; a gente vai à festa.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Bonequinha


Caso de doidice... efeito da lua... maré ruim... coisa de sangue... trabalho feito por Das Candeias de seu José de Eleutério, desprezada que jurou vingança... vento ruim que bateu... coisa de cabeça... treta do homem... mas, o fato é que, a menina morreu pelas festas. No mar.
O homem puxava a poita da canoa, resoluto, enquanto mirava o barco de seu Tião, lá longe. Depois não conseguiu despregar os olhos da menina. Ela, sentada no banquinho do meio, sorrindo, se transformando nos olhos dele, derramando um olhar de feitiço para cima do homem que a via com uns olhos perdidos. O barco de seu Tião já lá longe, a vela cheia, bojuda, deixando para trás a Gerumana e o Oitizeiro de seu Nino. Já lá longe vai o barco de seu Tião.
A menina descamba a cabeça para o lado e sorri boazinha, sorriso de lábios frescos, nos olhos negros o azul do céu e o mar refletem. Nada que transtorne a calma do dia. O homem rema lento. A menina lenta cresce, assim com uns olhos bêbados de se deitar no sono. Sobre ela o homem se ajeita, enquanto afinca já com força o remo na lama. De repente ela grita, um grito que se ouve dela gemendo na alma, na cama canoa. Ais de dor, ais da mulher em parto. Flor em botão que despetala.
O homem sem nome, filho do Cão, arregala os olhos pro mar, pro fundo da lama, e Ela é calma como o silêncio mudo. A boneca a boiar traz a lembrança do mar da Costa, quando ventavam as palhas do coqueiro e tinha-se de se manter o chapéu afincado na cabeça pr’ele não avoar. Diziam que os corpos infantis vinham da África, a dar na costa. Os navios que naufragavam. Era uma alegria só que nem se pensava no desastre, pois tão distante...
Mas, agora, que o corpinho de sua boneca no mar, agora que seus olhos se abriam e viam, o homem não se acreditou são. Levou as mãos à cabeça e gritou:
– Deus! Deus! Deus!
Mas logo parou. Pois o barco de seu Tião já vem lá, saindo à boca do rio.
O homem tem o remo envolto, firme nas mãos rígidas. O barco de seu Tião vem lá com sua vela branca. E o homem, resoluto, ergue bem alto o remo e, sob o céu azul, desce-o com toda a força sobre a cabeça da menina, rachando-a.
– Pai. Pai, ele ainda ouviu ecoar no mangue. E, de lá de dentro, avoou uma garça branca, assustadiça.
Caso de doidice... efeito da lua... maré ruim... coisa de sangue...