Raimundo Reis, pescador natural de Barcelos do Sul, tinha 34 anos, dois filhos que moravam com a mãe, um pai velho, Sr. Pissica, e, principalmente, tinha a mania de soltar bomba. Eu disse bomba, não bombinha de São João. Bomba, bombona de matar peixe.
Todos sabiam ser crime esse ato, mas nem por isso deixavam de executá-lo. Dentre os pescadores que se destacavam, posso citar Sr. Arivaldo, João do Velho, Senor, que tinha fama de bom mergulhador, Zé do Campo, e Manuel de Fulô. Este, uma vez, foi escarrerado manguezal adentro pelos agentes da Capitania dos Portos. Não se emendou. A pesca com bomba era excitante e fácil. E lá estava Manuel de Fulô de novo catando os peixes da superfície. Olhava em todas as direções para ver se vinha alguém da Marinha e, bum, mergulhava. Lá se ia ele buscar os peixes que não boiavam.
***
Eu tinha nove anos e era doido por refrigerante. Claro, era tão raro tomar que até mesmo quente sorvia-o de bom gosto, e lentamente, para prolongar o prazer. Ali era raro coisas geladas. Eis porque: primeiro, os moradores não tinham condições de comprar geladeira; segundo, a eletricidade ligava-se às seis horas e desligava-se às dez. Isto é mentira, se bem me recordo desligava-se sempre antes. Uma vez, somente uma vez, exceto nas festas de ano, a luz ficou acesa até de manhãzinha. E isto foi quando seu Caju morreu. Seu Caju era o Juiz de Paz; terceiro, pelo já exposto acima, percebe-se que a eletricidade era gerada por um motor que alimentava, mal, as trezentas e poucas lâmpadas, contando as dos postes (naquele tempo, ainda de madeira) e as das casas. Assim, se se ligasse uma geladeira, a luz baixava na hora. Mas, sem grande esforço de memória, posso dizer quem tinha geladeira naquele tempo em Barcelos do Sul: seu Caju, o Juiz de Paz, que já morreu nessa história, a sua era a gás e funcionava; meu pai, o Sr. Jocelyn Policarpo da Silva, apelidado Celi, a sua era à eletricidade, e não funcionava; e seu Vavá, dono de um armazém colado à venda de meu pai, na Praça da Matriz, em frente à Igreja. A sua era a gás e trabalhava bem.
Era na Praça da Matriz que eu estava. Tinha algumas moedas e ia tomar um refrigerante quando, lá em cima, no fim da rua, descendo para a praça, algumas pessoas aglomeradas em torno de um homem traziam-no nos braços, em cadeirinha.
Chegaram mais perto.
– Meu Deus! O que terá sido isso? perguntei-me.
– Foi a bomba, alguém respondeu.
– O quê!? Bomba!?
– Onde foi? Como foi? Por que foi? Ele não soltou logo, foi?
Ali estava Raimundo Reis, sentado, parara um pouco de tremer. Eu via com olhos curiosos de menino. Cotocos, sim, o que eram seus braços agora, só cotocos. Os nervos davam a impressão de que iam pingar, escorrer. No resto do corpo, muitas escoriações. O olho direito ficaria, como ficou, seriamente danificado, mas os cotocos, meu Deus, jamais esquecerei. Por fim levaram Raimundo Reis para Camamu. De lá ele foi a Salvador. E eu fiquei ali, abobado, repetindo aquele quadro horrível: um homem sentado, olhos esbugalhados e os cotocos com seus nervos pingando. Argh! Foi demais para mim, buliu-me todo por dentro. Mas, o que fazer? Quem procura acha. E, decidido, entrei no armazém de seu Vavá e pedi:
– Seu Vavá, me dê uma gasosa.
Ao que ele prontamente me atendeu. E, já esquecido de tudo, de Raimundo e do mundo, sorvia-a de bom gosto, e lentamente, só para prolongar o prazer.
Raimundo Reis, ironicamente, passou a ser visto por todos do lugar como homem de sorte, pois conseguiu se aposentar por invalidez. Hoje vive feliz com a nova esposa e com o “sigiloso” negócio de explosivos.
Foto "O Poder da Pesca", de joao bambu, retirada do Flickr.
Veja a força da expressão "buliu-me todo por dentro": é, FS, é cantando a própria terra, que se alcança mesmo a universalidade na literatura. Texto de 1ª.
ResponderExcluirOi Flamarion: Mais uma bonita página do seu livro. Recordações da infância, ou ficção em torno delas. Para completar, que foto encantadora! Abraço. Gláucia
ResponderExcluir"Quem procura acha". Procurei e achei aqui essa delícia de história. A sensação é que eu estava lá, vendo tudinho que você contou. Há humor, há lirismo, há o que existe de mais humano e rico no mundo: a alma do povo mais simples. Você é um prosador que nasceu pronto, Flamarion. Abraços.
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