Rio Barcelos

Rio Barcelos

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Janaína enfeitiçada



***
Janaína acompanhava o cortejo descalça. Os cabelos compridos caíam-lhe por sobre o rosto. Quem apreciava a procissão das janelas, perguntava-se:
   Quem é aquela vestida de Virgem Maria?
E respondia-se:
— Será Damiana de Tuninho? Ora, mas o que digo, Damiana de Tuninho saiu de casa com Zé Pedro. Mas, então, quem será? Ei, Miguel de Rola, aquela vestida de Virgem Maria, quem é?
   É Janaína de Sônia.
A mulher da janela, então, muito orgulhosa pela santa, que estava bem representada, dizia:
— Ah, isto sim é que é o correto, moça virgem, donzela, pura, que nem a Virgem Maria... Meu lenço, cadê, cadê meu lenço, diabo, olhe os olhos vertendo água de novo...
         Seu João de Eleutério seguia a procissão de joelhos e chamava a atenção de todos.
   Foi promessa que ele fez, foi?
— Então você não sabe? Prometeu que, se ficasse bom do reumatismo que lhe enferrujava os ossos, andava toda a procissão de joelhos.
   E pra que santo ele fez a promessa?
— Bem, aí é que a coisa complica, pois se Janaína é santa, isso lá eu não sei não... mas o resultado é que ele ficou bom. Não cansa de encher a boca e dizer: “Foi a Virgem Janaína que me curou”.
* * *
Já era noite quando a procissão chegou à igreja. Os foguetes subiam rasgando o céu, e brilhavam, e estouravam, e crianças corriam a pegar suas flechas, e nova subida, novo relâmpago, nova trovoada. Seu Dudu maltratava a matraca, e bate, bate, bate, bate. O sino badalava aturdido, e vinha gente, e entupia a igreja, e fazia calor, e mulheres gordas se abanavam com as mãos e davam pequenos soprinhos. Os santos, quietos, iluminados pelas velas e pelos olhos dos devotos, ouviam conversas:
   Santo Inácio só sai do nicho quando ele quer.
— Quem tem filho morto, quando vê a face de Nosso Senhor Morto no caixão, chora.
— Bom Jesus dos Passos mete medo nas crianças com aqueles cabelos compridos e com aquele vestido lilás e com aquela posição acorcundada. Minha avó tinha medo, minha mãe tinha medo, eu tive medo, meu filho mais novo tem medo, acho até que minha bisavó e também a mãe dela, as duas tinham medo. É um medo antigo.
— Essa igreja, essa mesma, quando foi construída, isso lá pelos idos de mil seiscentos e tanto, foi construída com a frente voltada para o mar, mas, dias depois, o povo ficou abismado, a igreja estava com a frente voltada para o vilarejo. O povo respeitou a vontade da santa, deixou a igreja com a frente voltada para o vilarejo, essa mesma, lá pelos idos de mil seiscentos e tanto...
— E Nossa Senhora das Candeias, olhe como está bonita... Aquele cordão de ouro foi finada Rosa de Queno que deixou para a santa, é de ouro puro. Será que alguém é capaz de roubar? Cruz credo, me deixe me benzer que isso é pecado... Mas, só de imaginar alguém surrupiando o cordão de ouro de Nossa Senhora das Candeias, já posso ver a mão do infeliz ficando durinha, não só uma, mas a outra também, pois a outra mão foi cúmplice, se ainda batesse na mão ladrona e disesse: “Pare! Que roubar é pecado! Ainda mais roubar a uma santa... é pecado!” Mas não, foi cúmplice, não ouviu o que diz o livro sagrado: “Não deixe que sua mão...” Será a esquerda ou a direita? Pois, sim, sim, ouçamos o que diz a bíblia: “Não deixe que sua mão direita saiba o que faz sua mão esquerda”. Porém, não há cúmplice inocente, ora, o que digo, se é cúmplice, claro que não é inocente. Não apenas a outra mão, a cúmplice, ficará dura, mas também as pernas, os olhos, todo o corpo, aliás, melhor, para todos os efeitos, a alma, também a alma, está ficará dura. Veja o caso de...
   Feche a matraca! Aí vem padre Ângelo.

* * *
O assistente do padre anda para lá e para cá embalançando um incensador, logo o ar fica impregnado de fumaça. As velas queimam nos castiçais e suas chamas de um ouro antigo banham as faces dos santos e deixam entrever os detalhes, também dourados, do altar barroco. O rapaz que viera de Maraú para tocar o harmônio, acompanha a Ave Maria que as moças treinadas por Pureza cantam. O povo dentro da igreja faz silêncio, mas, mesmo com todo o velado respeito à missa rezada em latim pelo padre, ainda assim se ouve um murmurinho abafado. Faz calor e algumas mulheres já ensaiam passar mal, pois se abanam com as mãos e bufam pequenos sopros de ar.
Sobre uma cadeira de espaldar, sentada ao lado esquerdo do padre, está Janaína. Tem a cabeça curvada, os cabelos negros, longos e encorpados caídos para a frente, tapando-lhe o rosto. Um longo vestido branco descai-lhe sobre o corpo. As mãos, as mantêm cruzadas sobre o ventre.
O padre começa o sermão, com seu sotaque italiano, falando das graças de Deus.
Janaína está quieta sentadinha na cadeira, as mãos cruzadas sobre o ventre, o rostinho inocente escondido nos cabelos. Ouve o padre falar no ciclo da vida.
Na cabeça de Janaína, dentro do seu corpo, no âmago de sua vida, começa a se formar um turbilhão. Uma coisa negra que vem lá do fundo irrompendo, rasgando, tomando conta de toda sua alma. Não pode ser o espírito divino. O espírito divino viria lá do alto, em forma de luz, e não essa lama fétida que brota das profundezas.
Ouve padre Ângelo maldizer as coisas pecaminosas, ameaçando-as com a mão pesada de Deus. Janaína escondeu um risinho cínico no canto dos lábios. Ninguém viu, e, se visse, ninguém acreditaria que fosse um riso de desdém, de pouco caso, de disfarçada chincana. Todos acreditariam fosse uma graça de felicidade, uma luz enviada pela Virgem Maria nos lábios daquela que lhe representava tão bem. Janaína descruza as mãos do ventre e as leva até as coxas, ergue um pouco a cabeça, jogando-a lentamente para trás, estufa o peito e, no exato momento em que o padre louva a Deus e toda a plateia sente a presença Dele, Janaína, executando um movimento delicado, ergue-se lentamente e, com o sorriso mais doce do mundo estampado na boca e nos olhos, mira o teto da igreja e, após um curto espaço de tempo, volve o olhar em direção ao padre, molha os lábios com a língua e num movimento autômato, dá um passo à frente e mira as pessoas dentro da igreja. Todos reparam nela. Supõem que seja uma cena teatral, um número ensaiado por Pureza, um incremento a mais na festa de Nossa Senhora das Candeias. O povo está emocionado. Padre Ângelo olha desconfiado. Que novidade será essa? A igreja silencia. No ar ouve-se apenas a música do harmônio tocado pelo rapaz que viera de Maraú. E a música é envolvente. E a plateia estática, atenta, esperando um desfecho. De repente as mulheres gritam, tapam os olhos, os homens arregalá-os para cima de Janaína. Padre Ângelo se benze enquanto guarda nos olhos a linda imagem de Janaína. Alguém grita lá do meio do povo:
   É o Diabo! Ela está com o Diabo no corpo!
E logo todos o imitam:
   É o Diabo! Ela está com o Diabo no corpo.
Janaína parece não ouvir. Vira-se para o lado de Bom Jesus da Cana Verde e, num gesto de ofertamento, abre os braços e descamba a cabeça para trás, como se fosse uma mulher oferecendo-se a um homem. O Bom Jesus da Cana Verde tem a feição resignada de quem sofre. Gotas de sangue pingam da coroa de espinhos colocada sobre sua cabeça. A moça oferta-se e ele com aquela feiçãozinha pra cima dela, como quem diz: “Eu te perdoo, minha filha”. O povo indignado.
   É o Diabo! Ela está com o Diabo no corpo!
Padre Ângelo não sabe o que fazer. Pureza tem que tomar uma providência. O vestido da Virgem Maria caído no chão. Pureza corre a pegá-lo. Janaína agora oferta-se a santo Inácio. O santo resiste bem, tem os olhos pregados num livro santo que tem nas mãos e não deita o olhar para cima de Janaína. Faz que não é com ele, que aquela obscenidade não lhe diz respeito. O outro padre que dê um jeito. Bom Jesus da Cana Verde, que é Jesus, não fez nada, então é ele que ia fazer. Não fez nada, ficou foi lá grudado no seu nicho, pois de lá ele só saía quando bem entendesse.
Pureza volta correndo e Janaína, agora dando as costas à multidão que se mantinha estupefata na igreja, abre os braços mais uma vez e oferta-se à Nossa senhora das Candeias. O povo agora já não vê nada. Pureza cobriu a menina, sim, pois ela estava completamente nua, e a arrastou para a sacristia.
* * *
Todos contaram depois:
— Janaína estava com o Diabo no corpo. Ficou nuazinha na frente de, primeiro na frente de Bom Jesus da Cana Verde e, depois, na frente de santo Inácio. Até para Nossa Senhora das Candeias ela se amostrou. Onde já se viu isso? Em que mundo nós estamos? Janaína com aqueles peitos... aquela cara de santa... aquelas nádegas... Você viu os peitos dela, viu? E a cara, você viu que cara? Dos lados branquinha, e no meio aquela floresta negra... Ai que pecado... Cruz credo! Deus que me livre de pensar esses pecados... Ai que eu não aguento... com licença que vou ali...
— Mas ela não podia mesmo fazer aquilo... e logo vestida de Virgem Maria... Sei não, viu... acho que Janaína vai ser queimada no inferno...
— Ela já foi castigada... então você não viu as lapeadas no corpo dela... Foi Bom Jesus da Cana Verde que lapeou o corpo dela.
— Pior que foi mesmo! Primeiro foi ela lá, nuazinha... aquele corpo todo... e depois os olhos de Bom Jesus da Cana Verde marcou o corpo dela... a mesma coisa como um animal é marcado, a ferro e fogo. Deus, sim, Deus, porque Bom Jesus da Cana Verde é Deus, Deus marcou o corpo dela, como se ela fosse uma besta... Mas foi assim, rapaz, na horinha, ficou nua, Deus pá, chicoteou ela... Eu é que nem quero pensar mais nisso... Deus castiga... Pior é que é difícil afastar o corpo nu de Janaína de dentro da cabeça... até parece que grudou no pensamento...
— Esses pensamento é assim mesmo, gruda na cabeça. Tem que tomar muito banho e lavar o corpo com bastante sabão pra sair.
— Oxente! Você ta doido? Doido e burro. Onde já se viu limpar o pensamento com água e sabão?
— Ignorante e burro é você, pois outro dia eu ouvi seu Zé de Noite alertar:
— Se a alma e o coração sujos estão, dê ao corpo água e sabão. Se o lado de fora limpo está, no lado de dentro fica a impressão. Não é reza e não é nada, mas, para quem não sabe rezar, eis aí uma boa oração.
***
(de O Pescador de Almas) 

sábado, 2 de junho de 2012

Sr. Centelhas



SR. CENTELHAS

I

O sono que tive não foi reparador, ao contrário, levantei-me bem cedo, quando não havia sol e as luzes dos postes ainda se encontravam acesas. Não pude compreender como dormira tanto, sim, pois desde às sete horas do dia anterior que eu dormia. No entanto, tinha o corpo quebrado, como se acabasse de chegar em casa de madrugada, voltando de uma festa, onde minhas energias tivessem se exaurido. Apesar do cansaço e do mal-estar, seria impossível deitar e dormir de novo. Portanto, decidido, fui ao banheiro e lavei apenas o rosto. Fazia frio, condição pouco estimulante para banho. Escovei os dentes e, enquanto fazia isso, olhava meu rosto num pequeno espelho quadrado de bordas alaranjadas, pendurado na parede, logo acima da pia. Vi um rosto sem expressão, marcado por olheiras escuras e um olhar apagado.  “Deus do céu! assustei-me. Mas que aparência horrível! Como pode alguém se apresentar com essa cara?” Fiquei uns dez minutos olhando aquela expressão apática, até que meus olhos mergulharam-se uns nos outros e, como se uma nuvem pairasse entre mim e o espelho, ofuscando tudo, subitamente não vi mais meu rosto.
Ouvi batidas na porta. Agora podia ver mais uma vez meu rosto no espelho, meu nariz, e meus olhos assombreados por profundas olheiras.
Enquanto atravessava a sala, olhei o relógio e me censurei por ainda não ter saído. E, mesmo sabendo ser toda minha a culpa por ainda estar ali no quarto, recriminei quem batia à porta com tanta insistência, cuja presença só me aborreceria ainda mais.
“Era só o que faltava! Sempre é assim. E agora não pode ser diferente.”
 Teria sido bom recompor-me, enfiar-me me algum estado de espírito que mostrasse realmente quem eu era. Mas nem pensei isso, tão rápido abri a porta e, quando vi, tinha em minha frente um raio de moça.
Com uma bandeja apoiada na mão esquerda e a direita erguida ainda em posição de bater, a moça não pôde controlar o impulso do murro que já dava na porta e, desajeitada, teve o corpo lançado à frente, esbarrando-o no meu. O murro passou-me zunindo na orelha esquerda. A bandeja, suspensa por uma reação automática dos músculos do braço, foi lançada para trás, o que provocou certo estardalhaço ao cair no chão.
Parados. Ficamos assim, assustados, um olhando a cara do outro.
“Que lindos e grandes olhos castanhos! Que boca! Que testa! E os cabelos! Ah, nada disso, testa pequena e bem feita; olhos realmente castanhos, mas não grandes, profundos, cansados, porém com intenso brilho e força, sob eles enormes olheiras enegrecidas, as quais contrastavam com a pele alva. Faltou o quê? Ah, a boca, não era carnuda, nem tampouco fina, regular, diria, não obstante rosada, de lábios firmes e, permita-me um deleite: frutinhas frescas. Os cabelos? Não sei, desalinhados...; nariz graciosamente arrebitado e, a respiração... bufos de égua em trote, bafejos expelidos de vulcão: um gozo...
E fala! (Que pena! Afastou-se um pouco de mim. percebe como eu estava um cretino?) vamos aos cumprimentos.
— Bom dia, senhor, vim trazer o café. Nádia. Meu nome é Nádia – e estendeu-me a pequena mão.
– Centelhas – apertei a sua com firmeza.
– Ai – gemeu, franzindo o cenho e o nariz, apertando os olhos e elevando um pouco o lábios superior.

Uma rosa vermelha,
com suas múltiplas reentrâncias, ensaiando,
no sofrer do nascimento,
o desabrochar.

(Agora era o lado poeta). Dois dentes destacavam-se bem no meio de outros que se seguiam perfilados.
“Que boca! Que fome de beijá-la!”
Contive-me, aspirando fundo.
Antes de falar outra coisa, limitei-me a olhar as horas.
— Queira me desculpar, senhor, devia ter vindo mais cedo, mas minha mãe, ela sofre de asma, passou muito mal essa noite, e a farmácia não abre antes das oito, especialmente nos dias de hoje abre ainda mais tarde, como se não fosse possível a alguém ficar acometido por algum mal justamente por hoje ser o dia que é. Tive que esperar abrir, comprar o remédio e voltar correndo em casa e medicar minha mãe, só aí então pude vir ao hotel e preparar o café dos hóspedes.
— Você já serviu os outros hóspedes? perguntei-lhe, muito sério.
— Oh, não, senhor, vim trazer primeiro o seu café. O senhor é novo por aqui e nem me conhece, não sabe que tenho uma mãe doente. Os outros hóspedes são todos conhecidos, eles vão entender se me atrasar. Acontece, às vezes, de eu nem precisar me explicar ou pedir desculpa pelo atraso, eles, muito cônscios que estão do estado de minha pobre mãezinha, simplesmente sorriem muito docilmente, como se me confortassem por ter uma vida difícil. Nessas horas me sinto feliz.
A moça me deixou desarmado. Usou um argumento estranho para me deslocar. “Diabos! Eu só queria recriminá-la, como faz um verdadeiro chefe.” Então, muito ligeiro e docilmente, perguntei-lhe se podia esperar um pouco, enquanto eu via uma coisa lá dentro. Na pressa com que tomei a decisão, bati a porta na sua cara e, rápido, corri até ao banheiro e parei em frente ao espelho. Tentei lembrar uma cara que fiz um dia, quando eu nem notei que Vera, minha ex-namorada, me olhava. Só depois que eu a vi, foi que ela disse:
—  Você estava com uma cara tão boa.
— Boa como? perguntei-lhe.
— Ah! Você parecia estar livre dos problemas do mundo.
Depois que Vera me disse isso, assim que pude corri ao espelho e tentei decorar aquela cara. Julguei que fosse uma cara simpática. Mas, dias depois, como eu insistisse em usá-la continuamente, a cara virou máscara, uma caricatura de mim. E, o efeito desastroso de usar uma máscara foi, um dia, Vera vir muito dolorosamente me dizer das suas dores de cólica e eu, inocente, mostrar-lhe uma cara simpática.
—   Você parece um bobo com essa cara, disse ela na sua dor.
A partir daí fiquei incerto se devia ou não usar aquela cara simpática. E não foi só isso, de certa forma a máscara grudou na minha memória, e de vez em quando ela vinha, insistente, querendo cobrir minha cara natural, que é a triste. Passei a ter outra personalidade, uma intrusa, uma indesejável.
E agora, ali no quarto do hotel, tentava lembrar com a máxima fidelidade aquela cara simpática, mesmo com a forte suspeita de que, tão logo eu a usasse, sobreviria a esse ato um grande e avassalador mal-estar. Peguei-a e vesti-a. Voltei correndo à sala e abri a porta. A moça não estava mais lá.
Aproximei-me da amurada do corredor e ouvi uma voz de homem gritando com alguém, lá embaixo. Desci para ver o que estava acontecendo.
— É mesmo impossível se tolerar coisas desse tipo, gritava senhor Moreiras, o proprietário do hotel, com a moça do café. E continuou: não se pode dar um dedo, a mão, e logo nos tomam o braço, o corpo, tudo, tudo; confundem tudo, liberdade com permissividade, cordialidade com amizade. E agora, e agora, mocinha, é capaz de ver a situação real? Olhe para mim. O que vê? Um liberal? Um amigo? Um cordial? Vamos, diga, o que vê? Ah, não diz nada! Pois bem, quem cala consente. E é justamente aí que está a burrice, poderia responder: “não, senhor, a melhor resposta é aquela que não se dá.” Mas fica calada, sem argumento, nem ao menos pôde me responder: “não, senhor, a melhor resposta é aquela que não se dá,” Hum.
—  Mas foi justamente o que fiz, senhor? disse a mocinha, muito recolhida em si.
— Quê?! Mas como ousa desafiar-me? Ah! logo vi, pertence àqueles tipos dissimulados! Espera que afrouxemos o laço e nos dá o bote.
Aproximei-me dos dois. Senhor Moreiras sorriu. A moça do café procurou recompor-se rápido e também sorriu. Fiquei tão envolvido com os gritos de senhor Moreiras que esqueci a máscara simpática. Portava agora tão somente a cara da alma.
– Vê, senhor... senhor..., dirigia-se ele a mim.
— Centelhas.
— Veja bem, senhor Centelhas, bonito nome, esta é Nádia, a moça do café. Repare bem, repare bem, se não o acordamos mais cedo é porque hoje é domingo; dorme-se até mais tarde aos domingos. O senhor dormiu bem? Ah, vê-se que dormiu, olhe só que cara esperta! Um passeio pela baía vai lhe fazer muito bem. Os manguezais são lindos, dizem, eu não acho, mas já que dizem, são realmente muito lindos. Tenho um barco a motor, eu mesmo posso levá-lo, seria um prazer. O senhor tem fome? Quer provar um pedaço de requeijão? Vou pegar.
O homem se apressou em ir pegar o requeijão.
A sós com Nádia, perguntei-lhe se aquele dia era realmente domingo. Ela respondeu:
— Oh, sim, hoje é realmente domingo. Poucos estabelecimentos estão abertos. Por isso esse silêncio. Não há o que se fazer domingo neste lugar. O senhor gostaria de passear pela baía?
— Oh, não, respondi, imitando-a na fala e no gesto expressivo que colocava no rosto quando falava assim.
— Ah, o senhor está me imitando, reclamou.
Nádia era de uma docilidade incrível. Via-a como uma filha amada. Ao refletir em mim tal pensamento, fui tocado por tamanha felicidade que me senti incapaz de sentir ódio. Sorri para ela. E o olhar que ela me retribuiu tocou tão fundo meu coração que quase deixei cair uma lágrima.

     Oh, não queiram os senhores imaginar o que aconteceu logo mais, à noite!...


II

Fechando a porta e virando-me para o interior do quarto, não estranhei a escuridão. Abri a janela, que, como tanto me disseram a boa Nádia e senhor Moreiras, dava para o rio Acarai.
Abri-a e vi as luzes dos postes acesas. Já era noite. Não me assustei com o avançado da hora.  Acostumara-me a sofrer esses lapsos de tempo. Às vezes as lacunas eram breves, uma hora, um minuto até, constantemente um segundo, porém só muito raramente se alargavam tanto. De certa forma isso faz parte do processo de ruminação ao qual me submeto: enquanto rumino, o lado de fora se me abstrai, dele perco o sentido.
    Para que tudo isso? Para quê? — pergunte-me, leitor.
Uma outra pergunta faço agora: serei mesmo eu, por vontade própria, que me submeto a essa digestão mental? A resposta é: não sei. Uma outra vez, quando dispuser de tempo, entregar-me-ei a esta análise. Mas, por ora, deixe-me lavar a alma (é um pensamento: sempre que sinto a alma suja, tomo demorados banhos; saio melhor de sob o chuveiro, a limpeza do corpo de fora reflete no de dentro) portanto, o que me faltava naquele momento era um banho. Ir-me-ia a ele e esquecer-me-ia do rio, de Nádia, de Vera e...
Segurando ambos os lados do meu pescoço com as mãos, enfiava-me Vera sua língua até a garganta.  Assim a senti, porém ela, depois, disse daquele modo não fora. Muito pelo contrário, apenas percorria com a sua língua o céu e toda a base de minha boca. Mais, enquanto o fazia, também ela, e não só eu, dava um pouco de si, pois espargia, como se fosse uma passaroca alimentando seu filhote ao bico, boa quantidade de saliva em minha boca, e, mais, sentira, durante bom tempo fiquei a sugá-la, como se a quisesse secar. Portanto não havia sido ela e sim eu quem me excedera naquele beijo. Bem quis ela fazer-me acreditar nisso. Mas, fosse como fosse, já era tarde, eu a tinha magoado, não só por jogá-la de encontro à prateleira do outro lado, na parede, também sim por ter-me mostrado espiritualmente grosso, o que ela não tolerava. Fosse violento por causas externas, porém com as causas do coração... ah, meu bom amigo, disse-me ela, com estas há de ser o homem e também a mulher delicados. Excessivamente delicados. E saiu batendo a porta, um gesto, digamos, extremamente grosso... no entanto perdoável, não só por ser conseqüência de um erro meu, mas sim por ser, de certa forma, uma grosseria alheia aos nossos sentimentos. Ficasse a situação por esse patamar, tudo ia bem. Mas, como agravante da grosseria, estávamos em casa de seus pais. E eles, pai e irmão de Vera, diferentes da porta que não tem ouvidos, pois quem os têm são as paredes, rápidos do quarto acudiram ao estatelar do corpo da filha na prateleira, e fizeram-se presentes na sala.
— Ora, mas tudo por causa de um beijo mal dado! Ou seria um beijo maldado? — pergunte-me.
Fique sem saber a resposta. E, se quiser, fique remoendo, remoendo, remoendo...
Que importância tem esse questionamento, se já estavam as feras com suas garras enfiadas no meu sofrido pescoço?
— Fale! Fale, homem mau! O que fez com minha filha? — disse o pai de um lado.
— Ah! Hum! Ah! Hum! Hummm! — urrou o irmão do outro, um adolescente: perdoe-lhe a irascibilidade. Mas o fato é que ambos cravavam suas unhas na minha jugular, o que me deixou sufocado.
    Fale! Vamos, fale, desgraçado — repetia o pai.
Bem gostaria de falar-lhes. Mas, como podia? Apertavam-me tanto o pescoço!
    Parem! Parem! — irrompeu Vera, gritando, na sala.
Imediatamente obedeceram. Largaram-me, recompuseram-se, sentaram-se no sofá e alargaram os olhos e os ouvidos, ansiosos por ver e ouvir o que tínhamos a dizer. Foi ela quem disse:
— Não briguem vocês por uma coisa tola! Senhor Centelhas não me fez nenhum mal, ao contrário, é ele um homem bom. Quer-me bem, é verdade, mas... descontrolou-se, foi isso, faltou-lhe o ar da delicadeza e...
— O ar da delicadeza?! — perguntou desconfiado o pai — Diga-me cá, filhinha, mas que raio de eufemismo é esse que nunca ouvi. A que diabo de grosseria ele suaviza?
— Ora, meu pai — começou ela, ganhando tempo — apenas quero dizer que... bem, faltar o ar da delicadeza é a mesma coisa que... pensando bem... é abrandar a intensidade de um beijo mal dado. Pronto, é isso.
Eu, jogado num canto, há tempo pedia:
    Água! Água, por favor — mas quem me ouvia?
— Água não há! Vá buscar em Minas! Minas não há! Ora, contenha-se! Então te sufoca um beijo e não água? — disse Vera, irritada.
— O quê? O que disse, minha flor? — perguntou curioso o pai, o irmão já distante, pensava em tal e tal coisa — Então quer dizer — continuou o pai — que se sufocou este traste com um beijo? Vou rir, ora se vou — E escancarou a boca para que nela se instaurasse um sorriso animal.
— Animal! Animal! Isto é o que és — disse gritando ao pai de minha noiva.
Para quê? Ai, malditas palavras foram aquelas! Todos na casa silenciaram de repente, o pai, minha gatinha de olhos verdes, e até o irmão, um grandessíssimo distraído, todos perderam a boca, só a porta da rua gemeu para que uma senhora gorda entrasse. Eis que porta fala!
— Acabei-me em compras — disse ela; não a porta, a mãe de Vera.
O encorpado da voz e a obesidade do corpo da mulher foram chupados. Não só eles, mas também as paredes, os móveis, o tempo e todo o espaço em redor. Realmente a porta rangeu e alguém entrou. Naquele momento estava eu à janela da pousada, no meu quarto, perdido a olhar o rio. Quanto tempo fiquei naquela abstração, remoendo uma cena vivida com Vera? Não sei. E, se não fosse o gemido da porta cortando esse elo, decerto a cena continuaria por mais horas e horas. Virei-me em direção ao limiar e ainda pude ouvir a moça dizendo: (a voz chegou-me misturada à da mãe de Vera, e eu ainda sob o efeito daquele momento).
— Trouxe-lhe nova refeição, senhor Centelhas — disse Nádia em pé, parada no vão da porta.
    Gorda! Gorda! Isto é o que és! — gritei-lhe, irado.
Assustou-se a mocinha, e com razão.
    Gorda, eu?!
Mais uma vez aqueles olhos... Podia agora vê-la melhor, em outro plano e... ora, constatei atônito: Nádia não passava de uma criança. Quantos anos? Doze, treze, se muito, quinze. Ao pé da escada não a vira pequena, talvez por ter-se portado como felina. Escondera-lhe o real tamanho a valentia. Mas dessa vez, ali em minha frente, plantada de pé, muito bonitinha e ereta dentro de um traje branco que talvez lhe tenha forçado a vestir senhor Moreiras, e portando-se como vítima de um mundo cruel, oh, senhor, como a quis tomá-la ao colo, beija-la tanto e pô-la a dormir! Velaria o seu sono como se eu fosse um deus, um pai protetor...
    Gorda, eu?!
— Oh, não! Não! Perdoe-me a estupidez! Encontrava-me perdido em... Ora, mas veja que minhas palavras foram mesmo muito estúpidas, és tão magrinha...
    Magrinha, eu?!
Logo percebi o quanto difícil é agradar as mulheres.
Furibunda, de um coice Nádia fechou a porta. E entrou no quarto.
— É inacreditável como as pessoas são cegas! — disse ela, enquanto caminhava até a mesinha de centro. Depositou a bandeja sobre esta, erigiu-se sobre si e muito ereta falou: —  Extremistas! Assim são os adolescentes. Extremistas! — “Ora, meu Deus” pensei, “com quem será que se rebela meu pobre bebê? Decerto um namorado, e, não tendo com quem se abrir, vem, assim, introduzindo dessa forma o assunto, e comigo! Obrigado, Senhor, por esta graça. Eis a oportunidade de orienta-la, não com a extremada firmeza dos pais, mas assim assim uma meio moderada conversa de amigo, porém nunca frouxa demais. Eis que vou orientá-la”.
— Filhinha... — nem bem abri o bico, rápida interpelou-me:
— É inadmissível! Inadmissível! — falava com os lábios cerrados e os olhos muito acesos, fula de raiva — Quem pensa que és, para assim, logo de chofre, emitir opinião destorcida a meu respeito?
Só aí então foi que liguei o pronome ao verbo e vi que se referia a mim.
Encarava-me direto nos olhos. Sempre fui tímido, baixei os meus. Para quê? Para quê? Tinha de ser firme e encara-la até obriga-la a baixar os seus, dobrá-la, remoê-la, remoê-la... depois.
— Há, há, há, há, há!
Ria-se de mim, a cretina. Com certeza adivinhou minha fraqueza em tempo de criança, quando, muito facilmente, qualquer garotinha fitando-me bem no fundo dos olhos me fazia baixar os meus. Naquele tempo era só uma brincadeira e, ainda assim, causava-me os maiores estragos.  Mas não daria a Nádia o gostinho da vitória, não cederia um dedo, nenhuma concessão.
Esta bravata interior eu erguia, e, enquanto a elevava além do chão, subi tanto em meus propósitos de vencê-la que, não tendo mais onde pôr os pés, inevitavelmente as pernas fraquejaram e — impossível não dobrá-las — junto com elas foram os olhos lamber o chão, e toda a cara, mas, se havia ainda um pouco de hombridade em mim — decerto que há em todos os fracotes — socorreu-me ela. Não importa o brilho que ela tenha, umas socorrem seus donos com altivez, com elegância e classe; outras... um ratinho, mesmo um ratinho traz dentro de si um algo de nobre... saber recuar, disfarçar, distrair e meter a hombridade pelo buraco, eis aí a mínima condição humana.   Por isso pensei em me desculpar, dizer-lhe que era mesmo muito bem feitinha de corpo e mesmo muito difícil saber se magra ou gorda.  Porém não o fiz, o que me pareceu ainda pior.
            Nádia, cansada de me tripudiar, sentou-se em frente à mesinha de centro e começou a servir o café.
            Bem, ponderei, já é alguma coisa colocar o meu café, de certa forma dobra-se, está sendo servil.
Esperei que terminasse de servir e se retirasse, mas, quem disse! Com a mais descarada elegância do mundo pôs-se a emitir risinhos oculares que, em tudo, já evidenciava o deboche e a superioridade.
Ato contínuo, levou a xícara aos lábios e ficou a me olhar por sob os olhos, como se espreitasse uma reação de minha parte, como se previsse, a cínica, que a qualquer momento eu chegaria ao meu limite e explodiria. Hi, hi, hi, hi, hi, ri-me por dentro, este gostinho eu não lhe daria. De fato, não dei. O que fiz? Dei-lhe as costas.
Feito um rato chiei e enfiei a cara no buraco. Nenhuma outra foi a resposta. Depois remastiguei esse meu comportamento. Havia, não sei de que modo, uma certa ligação entre o roedor e o ruminante, como se fossem eles parentes bem próximos, como se o ato de ruminar e o de roer fossem um só.
Da janela olhei para fora. O ar fresco e na rua poucas pessoas. A ponte que se encompridava indo de encontro ao rio, levava em suas bordas duas fileiras de postes com lâmpadas que clareavam muito mal. O reflexo da luz bronzeada brilhava na água escura do Acaraí. Na extremidade da ponte um homem tomava ar, ou talvez só pensasse, gastasse tempo, poluísse a natureza... virou-se. Ora, veja, senhor Moreiras! Então se dava ele a esses passatempos... Seria também um ruminante? Logo vi que não, pois bastou me ver à janela e bateu em retirada. Um verdadeiro ruminante não teria essa reação. Um homem, e ainda mais à noite, sim, pois a noite pertence mais aos sentidos do que à razão, a noite com suas penumbras, seus semitons, todo a sua característica barroca, à noite o homem viaja, não para fora, mas para dentro de si, ainda mais se a noite for fresca e se sob ela houver uma ponte e um rio para nele se desaguar... Um verdadeiro ruminante não veria um outro à janela, nem ninguém, nem nada. Apenas desaguaria, desaguaria...
Eu sei essas coisas porque sou um homem muito inteligente; outros nem se dão conta de que são ruminantes, (estes se assemelham ao boi e ao matadouro tanto se lhes faz ir ou não).
— Água! Água, por favor!
— Água não há! Vá buscar em Minas! Minas não há! Ora, contenha-se! Então te sufoca um beijo e não água? — disse Vera, irritada.
Fiquei muito tempo plantado à janela, remastigava um episódio de minha vida com Vera. Depois, após ouvir o apito de um barco na ponte, pisquei rápido e, hi, hi, o rato ressurgiu, lembrando-me de que Nádia tomava o meu café, abancada no meu sofá, em minha sala.
De uma virada repentina e violenta, mandei o rato aos infernos. Ah, como é bom sentir-se valente! Senhor de si! Dono da situação! Mesmo que seja por um segundo...
Bem se vê o tempo em que estive fora! Voltei à janela e constatei que na rua não se via um pé de gente. A ponte deserta. Silenciosa. Ao longe, o som de buzina de carro. E, de novo, o silêncio. Dentro do quarto, o ressonar de Nádia.