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Janaína acompanhava o cortejo
descalça. Os cabelos compridos caíam-lhe por sobre o rosto. Quem apreciava a
procissão das janelas, perguntava-se:
— Quem é aquela vestida de Virgem
Maria?
E respondia-se:
— Será Damiana de Tuninho? Ora,
mas o que digo, Damiana de Tuninho saiu de casa com Zé Pedro. Mas, então, quem
será? Ei, Miguel de Rola, aquela vestida de Virgem Maria, quem é?
— É Janaína de Sônia.
A mulher da janela, então,
muito orgulhosa pela santa, que estava bem representada, dizia:
— Ah, isto sim é que é o
correto, moça virgem, donzela, pura, que nem a Virgem Maria... Meu lenço, cadê,
cadê meu lenço, diabo, olhe os olhos vertendo água de novo...
Seu
João de Eleutério seguia a procissão de joelhos e chamava a atenção de todos.
— Foi promessa que ele fez, foi?
— Então você não sabe? Prometeu
que, se ficasse bom do reumatismo que lhe enferrujava os ossos, andava toda a
procissão de joelhos.
— E pra que santo ele fez a
promessa?
— Bem, aí é que a coisa
complica, pois se Janaína é santa, isso lá eu não sei não... mas o resultado é
que ele ficou bom. Não cansa de encher a boca e dizer: “Foi a Virgem Janaína
que me curou”.
* * *
Já era noite quando a procissão
chegou à igreja. Os foguetes subiam rasgando o céu, e brilhavam, e estouravam,
e crianças corriam a pegar suas flechas, e nova subida, novo relâmpago, nova
trovoada. Seu Dudu maltratava a matraca, e bate, bate, bate, bate. O sino badalava
aturdido, e vinha gente, e entupia a igreja, e fazia calor, e mulheres gordas
se abanavam com as mãos e davam pequenos soprinhos. Os santos, quietos,
iluminados pelas velas e pelos olhos dos devotos, ouviam conversas:
— Santo Inácio só sai do nicho
quando ele quer.
— Quem tem filho morto, quando
vê a face de Nosso Senhor Morto no caixão, chora.
— Bom Jesus dos Passos mete
medo nas crianças com aqueles cabelos compridos e com aquele vestido lilás e
com aquela posição acorcundada. Minha avó tinha medo, minha mãe tinha medo, eu
tive medo, meu filho mais novo tem medo, acho até que minha bisavó e também a
mãe dela, as duas tinham medo. É um medo antigo.
— Essa igreja, essa mesma,
quando foi construída, isso lá pelos idos de mil seiscentos e tanto, foi construída
com a frente voltada para o mar, mas, dias depois, o povo ficou abismado, a
igreja estava com a frente voltada para o vilarejo. O povo respeitou a vontade
da santa, deixou a igreja com a frente voltada para o vilarejo, essa mesma, lá
pelos idos de mil seiscentos e tanto...
— E Nossa Senhora das Candeias,
olhe como está bonita... Aquele cordão de ouro foi finada Rosa de Queno que
deixou para a santa, é de ouro puro. Será que alguém é capaz de roubar? Cruz
credo, me deixe me benzer que isso é pecado... Mas, só de imaginar alguém
surrupiando o cordão de ouro de Nossa Senhora das Candeias, já posso ver a mão
do infeliz ficando durinha, não só uma, mas a outra também, pois a outra mão
foi cúmplice, se ainda batesse na mão ladrona e disesse: “Pare! Que roubar é
pecado! Ainda mais roubar a uma santa... é pecado!” Mas não, foi cúmplice, não
ouviu o que diz o livro sagrado: “Não deixe que sua mão...” Será a esquerda ou
a direita? Pois, sim, sim, ouçamos o que diz a bíblia: “Não deixe que sua mão
direita saiba o que faz sua mão esquerda”. Porém, não há cúmplice inocente,
ora, o que digo, se é cúmplice, claro que não é inocente. Não apenas a outra
mão, a cúmplice, ficará dura, mas também as pernas, os olhos, todo o corpo,
aliás, melhor, para todos os efeitos, a alma, também a alma, está ficará dura.
Veja o caso de...
— Feche a matraca! Aí vem padre
Ângelo.
* * *
O assistente do padre anda para
lá e para cá embalançando um incensador, logo o ar fica impregnado de fumaça.
As velas queimam nos castiçais e suas chamas de um ouro antigo banham as faces
dos santos e deixam entrever os detalhes, também dourados, do altar barroco. O
rapaz que viera de Maraú para tocar o harmônio, acompanha a Ave Maria que as
moças treinadas por Pureza cantam. O povo dentro da igreja faz silêncio, mas,
mesmo com todo o velado respeito à missa rezada em latim pelo padre, ainda
assim se ouve um murmurinho abafado. Faz calor e algumas mulheres já ensaiam
passar mal, pois se abanam com as mãos e bufam pequenos sopros de ar.
Sobre uma cadeira de espaldar,
sentada ao lado esquerdo do padre, está Janaína. Tem a cabeça curvada, os
cabelos negros, longos e encorpados caídos para a frente, tapando-lhe o rosto.
Um longo vestido branco descai-lhe sobre o corpo. As mãos, as mantêm cruzadas
sobre o ventre.
O padre começa o sermão, com
seu sotaque italiano, falando das graças de Deus.
Janaína está quieta sentadinha
na cadeira, as mãos cruzadas sobre o ventre, o rostinho inocente escondido nos
cabelos. Ouve o padre falar no ciclo da vida.
Na cabeça de Janaína, dentro do
seu corpo, no âmago de sua vida, começa a se formar um turbilhão. Uma coisa
negra que vem lá do fundo irrompendo, rasgando, tomando conta de toda sua alma.
Não pode ser o espírito divino. O espírito divino viria lá do alto, em forma de
luz, e não essa lama fétida que brota das profundezas.
Ouve padre Ângelo maldizer as
coisas pecaminosas, ameaçando-as com a mão pesada de Deus. Janaína escondeu um
risinho cínico no canto dos lábios. Ninguém viu, e, se visse, ninguém
acreditaria que fosse um riso de desdém, de pouco caso, de disfarçada chincana.
Todos acreditariam fosse uma graça de felicidade, uma luz enviada pela Virgem
Maria nos lábios daquela que lhe representava tão bem. Janaína descruza as mãos
do ventre e as leva até as coxas, ergue um pouco a cabeça, jogando-a lentamente
para trás, estufa o peito e, no exato momento em que o padre louva a Deus e
toda a plateia sente a presença Dele, Janaína, executando um movimento
delicado, ergue-se lentamente e, com o sorriso mais doce do mundo estampado na
boca e nos olhos, mira o teto da igreja e, após um curto espaço de tempo, volve
o olhar em direção ao padre, molha os lábios com a língua e num movimento
autômato, dá um passo à frente e mira as pessoas dentro da igreja. Todos
reparam nela. Supõem que seja uma cena teatral, um número ensaiado por Pureza,
um incremento a mais na festa de Nossa Senhora das Candeias. O povo está
emocionado. Padre Ângelo olha desconfiado. Que novidade será essa? A igreja
silencia. No ar ouve-se apenas a música do harmônio tocado pelo rapaz que viera
de Maraú. E a música é envolvente. E a plateia estática, atenta, esperando um
desfecho. De repente as mulheres gritam, tapam os olhos, os homens arregalá-os
para cima de Janaína. Padre Ângelo se benze enquanto guarda nos olhos a linda
imagem de Janaína. Alguém grita lá do meio do povo:
— É o Diabo! Ela está com o Diabo
no corpo!
E logo todos o imitam:
— É o Diabo! Ela está com o Diabo
no corpo.
Janaína parece não ouvir.
Vira-se para o lado de Bom Jesus da Cana Verde e, num gesto de ofertamento,
abre os braços e descamba a cabeça para trás, como se fosse uma mulher
oferecendo-se a um homem. O Bom Jesus da Cana Verde tem a feição resignada de
quem sofre. Gotas de sangue pingam da coroa de espinhos colocada sobre sua
cabeça. A moça oferta-se e ele com aquela feiçãozinha pra cima dela, como quem
diz: “Eu te perdoo, minha filha”. O povo indignado.
— É o Diabo! Ela está com o Diabo
no corpo!
Padre Ângelo não sabe o que
fazer. Pureza tem que tomar uma providência. O vestido da Virgem Maria caído no
chão. Pureza corre a pegá-lo. Janaína agora oferta-se a santo Inácio. O santo
resiste bem, tem os olhos pregados num livro santo que tem nas mãos e não deita
o olhar para cima de Janaína. Faz que não é com ele, que aquela obscenidade não
lhe diz respeito. O outro padre que dê um jeito. Bom Jesus da Cana Verde, que é
Jesus, não fez nada, então é ele que ia fazer. Não fez nada, ficou foi lá
grudado no seu nicho, pois de lá ele só saía quando bem entendesse.
Pureza volta correndo e
Janaína, agora dando as costas à multidão que se mantinha estupefata na igreja,
abre os braços mais uma vez e oferta-se à Nossa senhora das Candeias. O povo
agora já não vê nada. Pureza cobriu a menina, sim, pois ela estava
completamente nua, e a arrastou para a sacristia.
* * *
Todos contaram depois:
— Janaína estava com o Diabo no
corpo. Ficou nuazinha na frente de, primeiro na frente de Bom Jesus da Cana
Verde e, depois, na frente de santo Inácio. Até para Nossa Senhora das Candeias
ela se amostrou. Onde já se viu isso? Em que mundo nós estamos? Janaína com
aqueles peitos... aquela cara de santa... aquelas nádegas... Você viu os peitos
dela, viu? E a cara, você viu que cara? Dos lados branquinha, e no meio aquela
floresta negra... Ai que pecado... Cruz credo! Deus que me livre de pensar
esses pecados... Ai que eu não aguento... com licença que vou ali...
— Mas ela não podia mesmo fazer
aquilo... e logo vestida de Virgem Maria... Sei não, viu... acho que Janaína
vai ser queimada no inferno...
— Ela já foi castigada... então
você não viu as lapeadas no corpo dela... Foi Bom Jesus da Cana Verde que
lapeou o corpo dela.
— Pior que foi mesmo! Primeiro
foi ela lá, nuazinha... aquele corpo todo... e depois os olhos de Bom Jesus da
Cana Verde marcou o corpo dela... a mesma coisa como um animal é marcado, a
ferro e fogo. Deus, sim, Deus, porque Bom Jesus da Cana Verde é Deus, Deus
marcou o corpo dela, como se ela fosse uma besta... Mas foi assim, rapaz, na
horinha, ficou nua, Deus pá, chicoteou ela... Eu é que nem quero pensar mais
nisso... Deus castiga... Pior é que é difícil afastar o corpo nu de Janaína de
dentro da cabeça... até parece que grudou no pensamento...
— Esses pensamento é assim
mesmo, gruda na cabeça. Tem que tomar muito banho e lavar o corpo com bastante
sabão pra sair.
— Oxente! Você ta doido? Doido
e burro. Onde já se viu limpar o pensamento com água e sabão?
— Ignorante e burro é você,
pois outro dia eu ouvi seu Zé de Noite alertar:
— Se a alma e o coração sujos
estão, dê ao corpo água e sabão. Se o lado de fora limpo está, no lado de
dentro fica a impressão. Não é reza e não é nada, mas, para quem não sabe
rezar, eis aí uma boa oração.
***
(de O Pescador de Almas)
fue como leer a jorge amado
ResponderExcluiruna delicia tu relato
besos*
O pescador é um livro interessantíssimo, muito bem urdido e de leitura saborosa.
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