Rio Barcelos

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quarta-feira, 5 de outubro de 2011

A ÚLTIMA CEIA


Olho minha mulher sentada à mesa. É Natal. Ceamos. Posso olhá-la à vontade, até certo ponto. Cronometro na cabeça o limite do meu olhar. Às vezes, propositalmente, ultrapasso essa barreira cronológica, só para ouvir seus xingamentos, só para sentir no meu coração apaixonado todo o ódio que ela nutre por mim. Ela bate na mesa com sua mão firme, que antes, isto bem antes, me acarinhava. Agora bate. Mas não me fere. Cada vez que a provoco é para que saiamos da inércia em que nossa vida se enfiou. Grita comigo. Minha linda mulherzinha esbraveja comigo e um pouco da comida da sua boca salta e bate no meu rosto, na minha boca. Abaixo a cabeça.
– Homem submisso. Fracote. Molambo – sei que ela diz essas coisas de mim. Mas o que ela nem ninguém percebem é que, ao me abaixar, submisso, o meu amor se nutre um pouco da vida dela. A língua lenta lambe o lábio e recolhe o alimento triturado, amassado, salivado pela sua boca.
***
– Quer mais frango? – ela perguntou outro dia. Quando? Olhe como o tempo é engraçado! Faz tanto tempo. Já se passaram tantos Natais.
– Quer mais frango? Vamos, queira, vou servir.
– Posso pegar uma coxa? – pergunto.
– Animal. Animal. Não pode ver comida. Tudo para se amostrar. Quando vê gente fica assim – ela diz, nervosa, e, sem modos e sem paciência, enfia com raiva um garfo enorme na coxa do frango, na maior coxa, na mais gorda coxa, e atira-a dentro do meu prato, respingando óleo na minha roupa branca de festa, manchando-a. Não reclamo, não lhe digo nada.
– Porco. Animal. Não pode ver comida.
***
Sorrio. Não repare, ela sempre foi assim estourada. Veja como me ama: agora mesmo acabou de derramar no meu prato um pouco de carne que sobrou. Ninguém quis.
– Como “ninguém.” Então há mais alguém além de mim e ela?
Nossa! Como a mesa está cheia! Filhos, genros, noras. E netinhos tão lindos!
– Vem cá para o vô, vem.
– Vô não – responde o menino, emburrado – Vô não – e me chuta a canela ferida, e dói, e sinto que sangra, mas não digo nada, ninguém pode perceber, estragaria o momento, não seria higiênico.
O sangue, misturado ao pus da ferida, gruda na calça. É uma ferida antiga que não sara. Já pensou, mostrasse o magoado sangrando e aí mesmo é que ela, com razão, me chamaria de porco.
Sorrio.
– Ah, zanguei – faço uma cara engraçada, de condoído, para o meu netinho.
– Macaco feio – ele me chama.
Todos sorriem. Veja como foi engraçado e como todos se acabam no riso.
– Posso pegar outra coxa? – pergunto.
– Não! Já vou tirar a mesa – e rápida raspa a tigela, os pratos, toda a comida da mesa.
No corredorzinho, indo à cozinha, olho seu corpo de moça, cinturinha delgada, nádegas volumosas, os cabelos compridos... Aspiro o rastro de alfazema que ela deixa.
– Pare de farejar a comida – ela diz, virando-se para mim, gritando, quase soltando, saltando a dentadura da boca, quase caindo de tonta.
***
– Calma, minha mãe. Calma – ouço a voz dela, num outro canto – E o senhor, meu pai, pare de aborrecer minha mãe.
– Ora, minha filha, não fiz nada – respondo, agora percebendo minha filha já de pé, segurando a mãe para não deixá-la cair. Tão parecidas!
Num outro canto, ouço cochichos, sibilos, cicios.
– Internar.
– Onde? Como?
– Mas quem vai querer o traste?
– Agüentemos mais um pouco. Logo emborca, embarca mesmo.
– Vaso ruim não quebra, minha filha – diz alguém com voz cínica, bêbada e esganiçada.
– Não fale assim dele. É meu pai.
Viro-me para ele, o cretino do meu genro e...
– Imbecil! Imbecil! Imbecil! 
E três batidas firmes na mesa.
Minha voz saiu clara, mas todos insistem em dizer que, de tão bêbado, nem consigo falar. Deve ser o maldito bolo crescendo na minha boca que me obstrui a voz. E, agora, todos me condenam e chegam ao consenso de que é melhor internar.
– E rápido. Amanhã mesmo. Amanhã mesmo, logo cedo.
Cochichos. Sibilos. Cicios.
***
Daqui a pouco a festa acaba e todos vão embora. Festa de que mesmo? Ah, Natal.
– É tarde. Vocês dormem aqui. Arranja-se lugar.
– Eu tenho pena. Não passa de um doente.
– Então, interna-se. Não há outro remédio.
– Durmam no meu quarto, que é grande. Já está dormindo. Bebeu demais...
– Quê? A festa já acabou? – pergunto-me – Para aonde foram todos? E este silêncio... O maldito relógio. Não consigo ver as horas. A catarata anuviou tudo.
– Meu bem. Meu bem – digo alto, isto algum dia. Dúvidas. Pensamentos. Fantasmas que me assustam – Xô! Xô! Quê? Internar? Levanto-me. Upa, upa, quase caio. Internar? Ora, mas quem eles pensam que são? Separar, separar assim, cruelmente, duas vidas que Deus... E o que Deus uniu o homem não separe. É um mandamento. Um mandamento. Um... Para sempre juntos, para sempre.
***
            Dirijo-me ao quarto dela. O meu fica um pouco mais lá no fundo do corredor. Casa grande... Faz anos que nos separamos. Mas estamos juntos. Repare bem: juntos. É um paradoxo, eu sei, mas o teto ainda é o mesmo. Habitamos o mesmo espaço, partilhamos tantas coisas de anos: o cheiro dela, a voz, o andar, antes lépido e fagueiro, hoje arrastado. É esse som. É esse cheiro de alfazema. Os gritos e os desarranjos. E foi principalmente o ronco que, tantas noites, passo a passo pelo corredor, levou-me ao quarto dela, e lá, quietinho, no escuro, ouvia-o com prazer. De certa forma, esses pequenos detalhes preenchem minha vida, sem os quais não vivo. A faca. E o que Deus uniu, o homem não separe.
            A porta aberta.
            – Venha, venha por aqui. Escuro, mas o tato já sabe o caminho. Cuidado, o pé da cama. Aqui. Aqui, um momento, paremos. Ouça:
            – Ronc! Ronc! Ronc!
            – É o ronco dela. Aqui os pés. Aqui a barriga. Aqui a cabeça. E aqui, mais embaixo, o coração.
            Ergo a cabeça e as mãos para o céu escuro do quarto e desço de vez, uma, duas, três vezes.
            – Meu amor! Meu amor! Meu amor!
***
            O escuro do quarto não me deixa ver o corpo. Sinto-o.
            O corpo meio curvado, feito criança no útero. Sangue. Criança no útero, abortada. A boca travou.
            – Não, não faça birra. Birra é uma palavra do meu tempo, quer dizer “teimosia.”
            Os lábios ainda mornos, viçosos e carnudos... Ainda como antes. Sinto-os com os meus. O gosto de sangue na boca. Beijo de sangue...
            – Ela apagou – digo por fim, com a certeza de quem desperta de um sonho tenebroso. Acendo a luz e vejo dois corpos na cama.  No mesmo instante, minha mulher abre a porta do quarto, olha a cama e vê o corpo ensangüentado. Leva as mãos à boca e arregala os olhos. Um grito de pavor ecoa por toda a casa.

domingo, 10 de julho de 2011

A olho-de-boi


Levei surra de meu pai por causa de meu irmão. A dor das cinturadas esvaiu-se no tempo; ficou o exemplo e o amor. Isto se deu quando éramos crianças, na época em que até a mentira, engenho de todos nós, elaborou-se natural e inocente, mas já mentira, completa em seus elementos.

Minha primeira mentira foi gerada de manhã, quando eu, meu irmão mais outros meninos jogávamos gude no meio da rua. Rua de terra, grama dos lados, própria à brincadeira.

Meu irmão batia-se no jogo com Moa, seu arqui-inimigo em todos os sentidos. Ganhasse quem ganhasse, a vitória seria saboreada com requintes supremos. Perdesse quem perdesse, acabava-se o sentido da vida. Vencer, vencer, era só o que perseguiam. Para tanto, montavam estratégias, ora cheias de valentias, em outros momentos, cautelosas, a bolinha que era atirada um pouco mais distante, a bolinha que se camuflava sob um montinho de grama, uma folha que a encobria; eram muitas as barricadas levantadas.

Eles estavam nesse embate, quando surgiu meu pai no alto da rua. Meu irmão estava prestes a ganhar o saquinho de gudes de Moa. Avistou meu pai longe, segurou a respiração, controlou-se.

- Olhe quem vem lá em cima, disse Moa, com o intuito de fazer meu irmão fugir da jogada, abandonar o jogo, desmoralizar-se perante todos.

Mas o quê?! Meu irmão ser chamado de corrão, de galinha choca! Nada. Calmamente ele pôs a língua fora da boca, virada para um dos lados, mordeu-a, ajeitou a gude entre o polegar e o indicador e lançou-a. Certeira.

- Vamos mais uma, provocou Moa.

- Aposto todas as minhas gudes contra a sua olho-de-boi, respondeu meu irmão.

- Só se for aqui e agora, respondeu Moa.

- Agora, sim; mas não aqui, vamos ao campinho.

Moa queria recuperar as gudes e, principalmente, a honra. E sua olho de boi era-lhe muito cara. A olho de boi de Moa era linda. Eu queria tanto ganhar uma olho de boi.

- Então vamos logo. E todos rumaram para o campinho. Mas antes meu irmão, que já vira meu pai descendo a rua, talvez impensadamente, coitado, pediu-me que ficasse ali e o aguardasse, e, caso perguntasse se eu o havia visto, respondesse que não, que ele não estava ali, jogando com os outros meninos.

Meu pai não suportava jogo. Logo iria perceber que suportava muito menos a mentira. Claro que houve uma prévia preparando o terreno para essa Senhora. Olhava a casa velha à minha frente. Eu, que nunca percebera seus detalhes já em decomposição, achei-lhe até certa poesia. O olhar triste dela, de senhora cansada, seu corpinho, que do barro foi gerada, logo ao barro retornaria. Que vida, meu Deus! Que vida!

- Cadê seu irmão? Foi logo perguntando meu pai.

Que susto! Foi um susto fingido, mas confesso que o senti de verdade.

- Ele não estava aqui não, pai, respondi-lhe, calmo. Ainda perguntei-lhe do bezerro Crioulo, cuja mãe morrera durante o parto. O olho dele é bem azul, não é, pai? Até parece uma gude olho-de-... Mas o senhor não pode dar mandioca a ele, pois é ainda muito novinho, não é pai?

- Seu irmão não estava aqui? perguntou-me de novo, dando-me última chance de salvação.

- Não, pai. Posso ajudar o senhor na roça, pai? emendei logo, na tentativa de despistá-lo do assunto em pauta.

Pegou-me rápido pelo braço, segurou-me firme, e tirou o cinto.

- Mentiroso! Toma, toma, para aprender a não mentir mais.

Deu-me pedagógicas cinturadas e, calmamente retomando o curso da vida, soltou-me, recolocou o cinturão no lugar, e, assobiando, como era do seu hábito, desceu o resto da rua, rumo à roça.

Chorando e com o coração aos pulos, não tendo em quem descontar as cinturadas recebidas, avistei uma boa pedra no chão, peguei-a e a atirei na casinha simpática que estava morrendo.

Ora, tinha que descarregar meu ódio em alguém! Hoje lhe encobre a cova belo prédio.

Ao chegar em casa, já lá estava meu irmão.

- Tomei uma sura por sua causa. Menti para pai, dizendo que você não estava lá na rua jogando gude.

Meu irmão calmamente levou a mão ao bolso e retirou a gude olho-de-boi que ganhara de Moa. Colocou-a entre mim e ele, segurando-a entre os dedos, e me disse:

- Tome, é sua; mas não é um prêmio pela mentira.

sábado, 12 de março de 2011

O pescador de almas

Gerana Damulakis

O pescador de almas é uma novela: redonda, bem amarrada, que conta a história de um pacto. Ela começa com uma introdução, “A propósito de uma história”, quando o autor orienta o leitor a respeito do que irá narrar, situando o episódio, falando com quem está lendo, enfim, iludindo, jogando suas páginas no universo da ficção, para, então, dar lugar a ela: “Que venha Janaína”.
A diafaneidade do narrador-personagem é proporcional à opacidade do personagem-narrador, que se insinua, diz ter sido criança nos tempos do narrado. Tal particularidade resulta em momentos saborosos e frequentes no início da novela, quando o autor interrompe o tecido ficcional para desculpar-se ou explicar-se, sem deixar de ser o narrador realista, que deve se abster de sentenciar ações e personagens.
Nota-se que o personagem criado pelo escritor para narrar, quase nem se constitui como personagem, apenas serve para perscrutar a proveniência das causas, rechear hiatos da trama. A condição de quase-personagem tem reprodução nesta espécie de narrador, que parece não desejar a onisciência, mas também não conseguiria contar tudo que precisa, sendo um censor parcial. Situação interessante e, de novo, criadora de mais ilusão.
Se tudo parece invenção — “Memória é invenção”, já bem disse José Saramago —, é uma mentira no molde das narrativas sublimes e excelsas, pois que esta narrativa tem uma percepção muito verossímil, calcada em fato, porque a verdade, para os que povoam a novela, se conclui sem dúvidas. Sim, Janaína é fruto de um pacto que será cobrado em algum momento, mas antes ela viverá esta história, ela terá sua primeira experiência sexual, detonadora de embates na frágil alma da menina que representará a mãe imaculada de Jesus.
O que ocorre em qualquer arte, ocorre na arte literária: trata-se da formação do homem artista, a qual escolta e escora o incremento estético da arte em questão. É, pois, sua percepção e vivência da “comédia humana, grotesca e sublime”, que fornece a orquestração temática para a obra madura. Por exemplo, neste O pescador de almas, as cenas em torno de Janaína compõem o cenário e a própria história, muitas vezes com toques especiais de humor, tais como o lugar onde as mulheres se banham, quando é preciso perguntar de antemão quem está ali, se homem, ou mulher.
Não faltam surpresas, as descrições são muito benfeitas e os diálogos chamam a atenção. Alguma cena atinge razoável voltagem lírica, apesar de não haver tendência poética neste autor. Impressionante é sua pratica da veia descritiva — vale atentar para a descrição do Bebe-Água. Mas, há também uma notável argúcia na caracterização do drama humano, o contato com a dor, com a luta pela sobrevivência do pescador e com a morte, aprofundados pela percepção. Flamarion Silva tem o dom de lançar os personagens aos abismos da alma, desde então sua paisagem de escolha para o desenvolvimento do melhor de sua ficção.
Voz ficcional possante, de corte realista e viés fantástico, pelo menos para os jamais adentraram certas crenças, para olhos estrangeiros. Voz que vem da experiência espessa da vida, particularizada e refletida, compondo o perfil do escritor.
O primeiro livro afirmou o escritor, o segundo livro de Flamarion Silva confirma o potencial do autor de O rato do capitão.