Rio Barcelos

Rio Barcelos

segunda-feira, 14 de maio de 2012


Não é sempre, mas às vezes levo sustos enormes. É como um rio que a gente navega, navega, mergulha nele, afoga-se nele, e nem se dá conta de que o rio é o curso de sua vida. Tenho essa impressão quando concluo algum texto, às vezes. O engraçado é que há um disfarce medonho, um terreno e tempo distantes, personagens nunca antes vistas ou sabidas, como se tudo isso pertencesse ao alheio, ao que não nos diz respeito. E o susto que tomo é este: saber que nada do que escrevo é alheio, o susto é saber que tudo o que escrevo diz respeito a mim, mesmo que distante, estranho, escuro, inconcebível, metamorfoseado em dragão ou em sereia, eu sou a fonte, eu sou o rio que deságua, para o abismo, para o fim, para o nada.

Capítulo de algo maior, ou menor. Sei lá.

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A luz do sol apareceu vermelha, rasgando o céu, lá por trás da península de Maraú. A ilha da Gerumana era uma sombra se elevando sobre o mar do canal. O ar ainda frio. Logo o sol desceria queimando tudo.
Teófilo ouviu um estrondo, vindo lá das bandas da Ponta de Caieira. Imaginou que fosse Raimundo Reis matando os peixes.
“Um desperdício. Uma maldade com a natureza. O desgraçado ainda vai se dar mal. O certo é pescar de linha, de rede de arrasto; o certo é usar a malha certa na rede, para não pegar os peixes pequeninos, que não servem para comer. É certo usar bomba? Milhares de ovas perdidas. O homem é burro. Raimundo Reis também é meu amigo mas é burro. Que mal fiz a Deus para ter um amigo burro?
Acendeu outro cigarro e tomou rumo contrário ao som da explosão. Não queria ouvir os estrondos. Foi para longe, para um lugar onde pudesse apoitar sua canoa, preparar sua isca e esperar que o peixe graúdo viesse morder o seu anzol.
“É diferente. É muito diferente. Pesca-se o necessário; não há matança desordenada. Diabo! O fim não justifica o meio.”
Imaginou Raimundo Reis catando as tainhas da superfície. O samburá do infeliz devia estar entornando peixe, mas não lhe era suficiente, o pescador sabia que lá no fundo estavam as tainhas gordas, por isso mergulharia e iria buscá-las.
O sol se escondeu atrás de grossas nuvens, lá onde a península descamba para o oceano. Nuvens negras, volumosas. O mar do Canal escureceu e a paisagem mudou. Desenhou-se um quadro de chuva. Teófilo percebeu que tudo ficou quieto. Julgou que fosse a explosão da bomba a causa de tanto silêncio. Deve ter assustado as garças e os savacus. Um bando de periquitos e todo o estardalhaço que fizeram, quando cruzaram o Canal, se ouvia agora longe, quase como uma ilusão.
Teófilo apurou o ouvido, na tentativa de ouvir a voz de algum outro pescador. Por aquelas bandas era comum um pedaço de voz vir bater nos ouvidos. O vento trazia e levava, num bater de asas.
“O tempo virou! Nenhum som. Nada. Ora, o mar está para peixe.”
Lançou a linha ao mar e esperou.
“Que mais se pode fazer nessa vida?”
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Fragmento de "uma coisa" que estou escrevendo; tomara que vingue.
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Eugênia, depois que percebeu que o marido havia saído, levantou-se, pois não estava com sono. Pegou o candeeiro pendurado em uma viga da casa e o colocou sobre a mesa, assim poderia ler o Almanaque Capivarol, exemplar que lhe dera seu João Celi, quando ela fora à vila comprar remédio para cólica. Era a única coisa que tinha para ler naquela casa. Havia uns casos e piadas engraçados na revista. Já os lera todos, mesmo assim sentia certo prazer em voltar à leitura, como se fosse a primeira vez. Sabia tudo de cor, mas havia um engenho na leitora que fazia com que a cada nova leitura brotasse da história algo novo. Ou como se a pessoa que estava lendo já fosse outra. Assim Eugênia se pôs a folhear a revistinha. E parou num caso conhecido. Ao terminar a leitura, estava emocionada, como se todos os problemas do seu mundo real tivessem deixado de existir. Naquele momento, só ela e a leitura. Desviou os olhos do almanaque e olhou a parede à sua frente. Agora uma outra história, também já vivida e repetida por Eugênia, saltou dos seus olhos e foi se desenrolar na parede. Ela era a espectadora. A luz amarela e trêmula do candeeiro projetando e dando movimento às imagens na parede. Era uma história. E era uma história triste. A história de um amor proibido. O filme parou de repente. Eugênia apagou o candeeiro com um sopro forte e as imagens evadiram-se. O cenário do mundo escureceu. Bobinha! A história não para nunca. Ela é filha do tempo. Ela continua, mesmo no silêncio, mesmo na escuridão...
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