Não é sempre, mas às vezes levo sustos enormes. É como um
rio que a gente navega, navega, mergulha nele, afoga-se nele, e nem se dá conta
de que o rio é o curso de sua vida. Tenho essa impressão quando concluo algum
texto, às vezes. O engraçado é que há um disfarce medonho, um terreno e tempo
distantes, personagens nunca antes vistas ou sabidas, como se tudo isso
pertencesse ao alheio, ao que não nos diz respeito. E o susto que tomo é este:
saber que nada do que escrevo é alheio, o susto é saber que tudo o que escrevo
diz respeito a mim, mesmo que distante, estranho, escuro, inconcebível,
metamorfoseado em dragão ou em sereia, eu sou a fonte, eu sou o rio que
deságua, para o abismo, para o fim, para o nada.
segunda-feira, 14 de maio de 2012
Capítulo de algo maior, ou menor. Sei lá.
***
A luz do sol apareceu vermelha, rasgando o céu, lá por trás
da península de Maraú. A ilha da Gerumana era uma sombra se elevando sobre o
mar do canal. O ar ainda frio. Logo o sol desceria queimando tudo.
Teófilo ouviu um estrondo, vindo lá das bandas da Ponta de
Caieira. Imaginou que fosse Raimundo Reis matando os peixes.
“Um desperdício. Uma maldade com a natureza. O desgraçado
ainda vai se dar mal. O certo é pescar de linha, de rede de arrasto; o certo é
usar a malha certa na rede, para não pegar os peixes pequeninos, que não servem
para comer. É certo usar bomba? Milhares de ovas perdidas. O homem é burro.
Raimundo Reis também é meu amigo mas é burro. Que mal fiz a Deus para ter um
amigo burro?
Acendeu outro cigarro e tomou rumo contrário ao som da
explosão. Não queria ouvir os estrondos. Foi para longe, para um lugar onde
pudesse apoitar sua canoa, preparar sua isca e esperar que o peixe graúdo
viesse morder o seu anzol.
“É diferente. É muito diferente. Pesca-se o necessário; não
há matança desordenada. Diabo! O fim não justifica o meio.”
Imaginou Raimundo Reis catando as tainhas da superfície. O
samburá do infeliz devia estar entornando peixe, mas não lhe era suficiente, o
pescador sabia que lá no fundo estavam as tainhas gordas, por isso mergulharia
e iria buscá-las.
O sol se escondeu atrás de grossas nuvens, lá onde a
península descamba para o oceano. Nuvens negras, volumosas. O mar do Canal
escureceu e a paisagem mudou. Desenhou-se um quadro de chuva. Teófilo percebeu
que tudo ficou quieto. Julgou que fosse a explosão da bomba a causa de tanto
silêncio. Deve ter assustado as garças e os savacus. Um bando de periquitos e
todo o estardalhaço que fizeram, quando cruzaram o Canal, se ouvia agora longe,
quase como uma ilusão.
Teófilo apurou o ouvido, na tentativa de ouvir a voz de
algum outro pescador. Por aquelas bandas era comum um pedaço de voz vir bater
nos ouvidos. O vento trazia e levava, num bater de asas.
“O tempo virou! Nenhum som. Nada. Ora, o mar está para
peixe.”
Lançou a linha ao mar e esperou.
“Que mais se pode fazer nessa vida?”
***
Fragmento de "uma coisa" que estou escrevendo;
tomara que vingue.
***
Eugênia, depois que percebeu que o marido havia saído,
levantou-se, pois não estava com sono. Pegou o candeeiro pendurado em uma viga
da casa e o colocou sobre a mesa, assim poderia ler o Almanaque Capivarol,
exemplar que lhe dera seu João Celi, quando ela fora à vila comprar remédio
para cólica. Era a única coisa que tinha para ler naquela casa. Havia uns casos
e piadas engraçados na revista. Já os lera todos, mesmo assim sentia certo
prazer em voltar à leitura, como se fosse a primeira vez. Sabia tudo de cor,
mas havia um engenho na leitora que fazia com que a cada nova leitura brotasse
da história algo novo. Ou como se a pessoa que estava lendo já fosse outra.
Assim Eugênia se pôs a folhear a revistinha. E parou num caso conhecido. Ao
terminar a leitura, estava emocionada, como se todos os problemas do seu mundo
real tivessem deixado de existir. Naquele momento, só ela e a leitura. Desviou
os olhos do almanaque e olhou a parede à sua frente. Agora uma outra história,
também já vivida e repetida por Eugênia, saltou dos seus olhos e foi se
desenrolar na parede. Ela era a espectadora. A luz amarela e trêmula do
candeeiro projetando e dando movimento às imagens na parede. Era uma história.
E era uma história triste. A história de um amor proibido. O filme parou de
repente. Eugênia apagou o candeeiro com um sopro forte e as imagens
evadiram-se. O cenário do mundo escureceu. Bobinha! A história não para nunca.
Ela é filha do tempo. Ela continua, mesmo no silêncio, mesmo na escuridão...
***
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