Rio Barcelos

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sábado, 28 de julho de 2012

Criaturas do deus



                                                                   ***
Dona Benedita vinha chegando. Olzinha havia se sentado em um tamborete ao lado de Janaína. Do outro lado da cama uma vela acesa. O ar empestado do cheiro da vela trouxe à lembrança o ambiente da igreja de Nossa Senhora das Candeias. A imagem que vinha à mente não era logo a de Janaína despida se oferecendo aos santos. Havia uma ordem no pensamento que preparava a cena. Primeiro era a igreja cheia, todo mundo com calor. Padre Ângelo realizando o ofício divino em latim. Ninguém entendia o que ele dizia. Agora, ali no quarto, os olhos fixos no corpo de Janaína, ninguém nem mesmo ouvia no pensamento a voz do padre. Algo maior e mais importante punha a voz do padre muda na imaginação. A visão era forte. Via-se a feição horrorizada do padre; via-se o corpo moreno e viçoso de Janaína; via-se sua carinha de anjo; via-se tudo de acordo com a presença de Janaína, ela era o centro, ela era como Nossa Senhora lá no altar. Mas ninguém via Nossa Senhora não. Esta já estava salva. Ou perdida, segundo dona Benedita. O que todos olhavam era Janaína nua. Ela que representava tão bem a Virgem Maria. Agora, nos olhos de todos, ela era a Virgem Janaína, a pecadora, a perdida. E a visão de todos estava atrapalhada. Viam Janaína viva e nua, de pé na igreja, e logo, arregalando os olhos, viam Janaína bem na sua frente, vestida e estirada na cama, morta. Olica, que vira Janaína na igreja e a via agora, não sabia o que estava lhe acontecendo, pois pegou-se excitado, desejando o corpo de Janaína. Envergonhado e com a mão na frente do membro, ele saiu do quarto. Seu Edgar foi atrás. E Donga continuou mais um pouco. Havia algo que ele não conseguia entender. Falou baixinho:
— A vida é destrambelhada. Como pode, meu Deus, como pode? Tanta formosura desperdiçada, jogada fora, para servir de banquete aos vermes... A vida é um desatino.
Resolveu que ia comer Ana Rita, a mulher de seu amigo Terêncio, que andava se arreganhando para ele. Não era nenhuma beldade, nem moça e nem santa, mas que, por ser casada e por ter um rabo, de certa forma era proibida.
— O desejo é forte no pecado. Deus e Terêncio que me perdoem. Vou pecar. Sou humano.
E saiu.

Foi nessa hora que Olzinha atinou para a vida. Pois ela não estava pensando em Janaína nua na igreja em relação com o corpo estirado na cama, não. Ela pensava em Janaína sim. Mas elas estavam tomando banho no rio. Janaína tão linda com o biquíni que Olzinha lhe dera. Sorrindo tão cheia de vida. E agora, morta. Começou a chorar.
Dona Benedita, que ainda vinha chegando, viu o estado da filha e disse, sentida:
— Ô, minha filhinha, eu disse para me esperar. Tenho um lencinho aqui no porta-seios, tome, enxugue as lágrimas.
— A vida é errada, minha mãe. A vida é errada. Seu Euclides, que é velho e está com o corpo imprestável, não morre. Já minha amiga Jana, que era jovem e bonita... ah, minha mãe, olhe só o que aconteceu com ela... Me diga, me diga se esta merda de vida tem sentido...
— Ô, minha filha, não diga blasfêmia. Deus está ouvindo... São os desígnios do Pai. Ele é onipotente, Ele sabe o que faz... Ele é onipresente, hum, hum... Você precisa ler o livro sagrado. E tire a merda da boca.
— Será, minha mãe? Será que esse Deus sabe o que faz?... Ele deve tá é dando risada da gente...

***
 Continuação de O Pescador de Almas.

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Pescadores


***

 Chegaram ao bar de Preto. Lá estavam pescadores falando mentiras, contando vantagens, soltando palavrões, falando putaria, enfim, praticando a verdadeira filosofia da vida. Entre eles estava Terêncio. Encontrava-se sóbrio. Juarez não tinha opinião e repetia todas as asneiras que ouvia. Djalma escorava-se no balcão e todos juravam que cairia caso arriscasse um passo. Isso se repetia todos os dias. Preto não bebia e não fumava, caso contrário, imprudentemente beberia e comeria ele mesmo o seu ganha pão.
Enfim, havia outros pescadores que, como os já citados, ocupam um plano secundário na história.
Mas Terêncio parecia não se dar conta disso. Tentou dar um ar nobre à sua postura de homem rude. O que desejaria o molambo? Sabemos o caso de sua mulher com José Reis. Mas os outros que bebiam no bar de Preto pareciam desconhecer a traição de Rita. Abriria então este homem a boca? Difamaria a mulher, jogando-a na boca do povo? Não. Claro que não faria tal asneira. E ele próprio, não conta? Claro que conta. Não gostaria de ser apontado na rua:
— Olhe, lá vai Terêncio, o corno.
Outro:
— Veja, senhor Emanuel,  lá vai Terêncio, o chifrudo, passar a noite na roça.
É verdade. Terêncio ultimamente vinha com essa ideia de dormir na roça. E tudo por causa das formigas, que lhe acabavam a plantação. De noite ele as seguia até ao formigueiro. Botava a mangueira na boca do formigueiro e bombava a formicida lá dentro do buraco. Não devia se esquecer de fechar a boca do buraco, para impedir que entrasse ar, desse modo elas morreriam. Mas sempre depois aparecia mais e mais formigas, cada qual com seu ar patriótico carregando a bandeirinha verde. Então as idas de Terêncio à roça estavam explicadas. Claro que estavam. O que não se explicava era como podia um homem abandonar sua mulher e ir meter-se com formigas em noites de frio. Não estava ele, dessa forma, abrindo a porta ao imponderável? Claro que estava. Mas este é um jogo armado em tabuleiro escuro.
Terêncio, vestido de nobre em espírito rude, foi até a mesa onde estavam João do Velho e José Reis. Disse:
— Boa tarde, seu João; boa tarde, José Reis. Posso me sentar um pouco aqui com vocês?
João do Velho se adiantou e disse:
— Claro, Terêncio. Nem precisa perguntar. Vamos, puxe o tamborete e se sente.
Encobriu o pensamento que o levava a aproximar-se dos dois com:
— A pescaria hoje foi boa, não foi João do Velho?
— Não posso reclamar. Só uma arraiazinha, mas que me deu um trabalho...
— É João do Velho, pescaria boa é assim, quando o pescador usa a experiência aliada à inteligência. Não é não?
— Inteligência e experiência, que nada! Dei foi sorte.
— Você, além de sábio, é modesto, João, por isso todo mundo gosta de você.
Terêncio, dirigindo-se a José Reis, pergunta:
— E você, José Reis, também pegou alguma arraia?
— Não. Peguei foi tainha de bomba. Explodi todas elas. Não tenho experiência, nem inteligência e, quer saber, Terêncio, nem paciência. E mais, exploda-se quem não gosta de mim.
Terêncio fez que não entendeu o tom arrogante de José Reis. Continuou:
— É, há quem goste de fazer da vida uma aventura, não se importando com o estrago que cause.
— Oxe! Tá me repreendendo, Terêncio?
— De forma alguma. Aliás, quer saber? Tô lhe repreendendo sim. Não é certo um sujeito estragar um bem que não é seu, e...
— E o quê, Terêncio? O que é que você vai fazer?
João do Velho procurou desviar o rumo e a temperatura da conversa:
— Parem vocês dois com esta conversa que não leva a nada.
José Reis, já esquentado, queria mais era que tudo fervesse.
— Com certeza que levará à porra de algum lugar, sim, João do Velho. Conversa de mulher e homem, sempre dois comem. E conversa de homem com homem, sempre um some.
João do Velho riu do amigo, que saiu com esse dito vagabundo.
— Vamos ver quem vai sumir, José Reis. Vamos ver. Fique aí segurando sua bomba... — Terêncio disse em tom de ameaça. Levantou-se e saiu do bar.
José Reis fez menção de avançar no pescoço do desgraçado. João do Velho o conteve, dizendo:
— Calma, homem, calma. — e pediu: — Preto! Manda uma gelada!

***
Capítulo do livro João do Velho