Olho minha
mulher sentada à mesa. É Natal. Ceamos. Posso olhá-la à vontade, até certo
ponto. Cronometro na cabeça o limite do meu olhar. Às vezes, propositalmente,
ultrapasso essa barreira cronológica, só para ouvir seus xingamentos, só para
sentir no meu coração apaixonado todo o ódio que ela nutre por mim. Ela bate na
mesa com sua mão firme, que antes, isto bem antes, me acarinhava. Agora bate.
Mas não me fere. Cada vez que a provoco é para que saiamos da inércia em que
nossa vida se enfiou. Grita comigo. Minha linda mulherzinha esbraveja comigo e
um pouco da comida da sua boca salta e bate no meu rosto, na minha boca. Abaixo
a cabeça.
– Homem
submisso. Fracote. Molambo – sei que ela diz essas coisas de mim. Mas o que ela
nem ninguém percebem é que, ao me abaixar, submisso, o meu amor se nutre um
pouco da vida dela. A língua lenta lambe o lábio e recolhe o alimento
triturado, amassado, salivado pela sua boca.
***
– Quer mais
frango? – ela perguntou outro dia. Quando? Olhe como o tempo é engraçado! Faz
tanto tempo. Já se passaram tantos Natais.
– Quer mais
frango? Vamos, queira, vou servir.
– Posso pegar
uma coxa? – pergunto.
– Animal.
Animal. Não pode ver comida. Tudo para se amostrar. Quando vê gente fica assim
– ela diz, nervosa, e, sem modos e sem paciência, enfia com raiva um garfo
enorme na coxa do frango, na maior coxa, na mais gorda coxa, e atira-a dentro
do meu prato, respingando óleo na minha roupa branca de festa, manchando-a. Não
reclamo, não lhe digo nada.
– Porco. Animal.
Não pode ver comida.
***
Sorrio. Não
repare, ela sempre foi assim estourada. Veja como me ama: agora mesmo acabou de
derramar no meu prato um pouco de carne que sobrou. Ninguém quis.
– Como
“ninguém.” Então há mais alguém além de mim e ela?
Nossa! Como a
mesa está cheia! Filhos, genros, noras. E netinhos tão lindos!
– Vem cá para o
vô, vem.
– Vô não –
responde o menino, emburrado – Vô não – e me chuta a canela ferida, e dói, e
sinto que sangra, mas não digo nada, ninguém pode perceber, estragaria o
momento, não seria higiênico.
O sangue,
misturado ao pus da ferida, gruda na calça. É uma ferida antiga que não sara.
Já pensou, mostrasse o magoado sangrando e aí mesmo é que ela, com razão, me
chamaria de porco.
Sorrio.
– Ah, zanguei –
faço uma cara engraçada, de condoído, para o meu netinho.
– Macaco feio –
ele me chama.
Todos sorriem.
Veja como foi engraçado e como todos se acabam no riso.
– Posso pegar
outra coxa? – pergunto.
– Não! Já vou
tirar a mesa – e rápida raspa a tigela, os pratos, toda a comida da mesa.
No
corredorzinho, indo à cozinha, olho seu corpo de moça, cinturinha delgada,
nádegas volumosas, os cabelos compridos... Aspiro o rastro de alfazema que ela
deixa.
– Pare de
farejar a comida – ela diz, virando-se para mim, gritando, quase soltando,
saltando a dentadura da boca, quase caindo de tonta.
***
– Calma, minha
mãe. Calma – ouço a voz dela, num outro canto – E o senhor, meu pai, pare de
aborrecer minha mãe.
– Ora, minha
filha, não fiz nada – respondo, agora percebendo minha filha já de pé,
segurando a mãe para não deixá-la cair. Tão parecidas!
Num outro canto,
ouço cochichos, sibilos, cicios.
– Internar.
– Onde? Como?
– Mas quem vai
querer o traste?
– Agüentemos
mais um pouco. Logo emborca, embarca mesmo.
– Vaso ruim não
quebra, minha filha – diz alguém com voz cínica, bêbada e esganiçada.
– Não fale assim
dele. É meu pai.
Viro-me para
ele, o cretino do meu genro e...
– Imbecil!
Imbecil! Imbecil!
E três batidas
firmes na mesa.
Minha voz saiu
clara, mas todos insistem em dizer que, de tão bêbado, nem consigo falar. Deve
ser o maldito bolo crescendo na minha boca que me obstrui a voz. E, agora,
todos me condenam e chegam ao consenso de que é melhor internar.
– E rápido.
Amanhã mesmo. Amanhã mesmo, logo cedo.
Cochichos.
Sibilos. Cicios.
***
Daqui a pouco a
festa acaba e todos vão embora. Festa de que mesmo? Ah, Natal.
– É tarde. Vocês
dormem aqui. Arranja-se lugar.
– Eu tenho pena.
Não passa de um doente.
– Então,
interna-se. Não há outro remédio.
– Durmam no meu
quarto, que é grande. Já está dormindo. Bebeu demais...
– Quê? A festa
já acabou? – pergunto-me – Para aonde foram todos? E este silêncio... O maldito
relógio. Não consigo ver as horas. A catarata anuviou tudo.
– Meu bem. Meu
bem – digo alto, isto algum dia. Dúvidas. Pensamentos. Fantasmas que me
assustam – Xô! Xô! Quê? Internar? Levanto-me. Upa, upa, quase caio. Internar?
Ora, mas quem eles pensam que são? Separar, separar assim, cruelmente, duas
vidas que Deus... E o que Deus uniu o homem não separe. É um mandamento. Um
mandamento. Um... Para sempre juntos, para sempre.
***
Dirijo-me
ao quarto dela. O meu fica um pouco mais lá no fundo do corredor. Casa grande...
Faz anos que nos separamos. Mas estamos juntos. Repare bem: juntos. É um
paradoxo, eu sei, mas o teto ainda é o mesmo. Habitamos o mesmo espaço,
partilhamos tantas coisas de anos: o cheiro dela, a voz, o andar, antes lépido
e fagueiro, hoje arrastado. É esse som. É esse cheiro de alfazema. Os gritos e
os desarranjos. E foi principalmente o ronco que, tantas noites, passo a passo
pelo corredor, levou-me ao quarto dela, e lá, quietinho, no escuro, ouvia-o com
prazer. De certa forma, esses pequenos detalhes preenchem minha vida, sem os
quais não vivo. A faca. E o que Deus uniu, o homem não separe.
A
porta aberta.
–
Venha, venha por aqui. Escuro, mas o tato já sabe o caminho. Cuidado, o pé da
cama. Aqui. Aqui, um momento, paremos. Ouça:
–
Ronc! Ronc! Ronc!
– É o
ronco dela. Aqui os pés. Aqui a barriga. Aqui a cabeça. E aqui, mais embaixo, o
coração.
Ergo
a cabeça e as mãos para o céu escuro do quarto e desço de vez, uma, duas, três
vezes.
– Meu
amor! Meu amor! Meu amor!
***
O
escuro do quarto não me deixa ver o corpo. Sinto-o.
O
corpo meio curvado, feito criança no útero. Sangue. Criança no útero, abortada.
A boca travou.
–
Não, não faça birra. Birra é uma palavra do meu tempo, quer dizer “teimosia.”
Os
lábios ainda mornos, viçosos e carnudos... Ainda como antes. Sinto-os com os
meus. O gosto de sangue na boca. Beijo de sangue...
– Ela
apagou – digo por fim, com a certeza de quem desperta de um sonho tenebroso.
Acendo a luz e vejo dois corpos na cama. No mesmo instante, minha mulher abre a porta
do quarto, olha a cama e vê o corpo ensangüentado. Leva as mãos à boca e
arregala os olhos. Um grito de pavor ecoa por toda a casa.
Flamarion, belo conto. Fortíssimo.
ResponderExcluirUm grande abraço.
Obrigado pela visita, Lidi. Meu abraço.
ResponderExcluirFlamarion, passando aqui para desejar um bom Natal para você e família. Abraço.
ResponderExcluir2011 me deu a oprtunidade de conhecer esse espaço, de rara sensibilidade e que visito sempre. Continuo seguindo, com muita honra pra mim. Feliz Ano Novo.
ResponderExcluirAbraço.
Gilson.