Romildo passou e falou com
Janaína, na praça. Ela derramou um olhar mortiço de sedução pra cima dele. O
besta não percebeu. Com uma visgueira na mão, ele disse que ia pegar um
guriantan que tinha visto no pé de capiá, no quintal de dona Carmelita.
— Eu te dou ele de presente pra você,
Janaína.
Ela, que já ia lá adiante,
virou-se e foi esparramando pelo chão, até alcançar os olhos de Romildo, um
olhar grudento. Tão grudento como aquela visgueira que ele tinha na mão. O
corpo do moço buliu. O coração disparou. Ele deu uma carreira. No mato esqueceu
o passarinho. Escondido numa touceira de bananeiras, invocou o feitiço da alma
de Janaína. Arriou o calção, fechou os olhos e mandou sua alma lambuzar-se com
a alma daquela diaba. Um fogo subiu-lhe por todo o corpo. Eram as formigas de
fogo e as formigas caçarema atiçando fogo no corpo dele. Gozou, aliviou-se.
Livrou-se das formigas e foi ver se ainda pegava o guriantan que cantava no pé
de capiá, no fundo do quintal de dona Carmelita. Chamou-se de sortista, o
bichinho ainda estava lá, e mais bonito, mais colorido, azulado nas costas, o
peito amarelo, e trinava forte. Mansinho, pareceu-lhe. Subiu na cerca e trepou
numa galha do pé de capiá, sem fazer barulho, sorrateiramente como ele sabia se
mover no mato. Pensou em Janaína. Ela ia gostar do presente. Um presente de
amor. E o guriantan ia cantar todo dia de manhã cedo e o canto dele ia entrar
no ouvidinho dela, no pensamento, e ela ia pensar que era um sonho colorido.
Sonhava com Romildo e arriava de novo aquele olhar meloso. Acordaria pensando
nele e descobria que o amava. O guriantan, agora pulou para a outra galha. Romildo,
sabe-se lá por que diabos, resolveu que ia pegar o pássaro de mão. Contaria a
Janaína como foi e ela ia ficar garbosa do feito. Não era gabação não. Romildo
tinha mesmo jeito para pegar passarinho. Tinha dias que ia pro mato e voltava
com japiranga, sabiá, até sanhaço; os beija-flores chegavam mortos, de
badogada; e os sanhaços, estes não sobreviviam em gaiola. Os nicos eram
engraçados. Pegava-os todos, passarinhos e outros bichos, no manzuá. Os
coitadinhos entravam pelo buraco e não encontravam a saída. Mais um pouco e Romildo
botava a mão no guriantan. Bateu um vento. A árvore fez que ia cair. Romildo se
segurou. A galha embalançou. O passarinho avoou. Pousou, na ponta de uma
galhinha, fina, lá Romildo não ia. “Eu vou”, disse ele. O vento ficou por ali.
As outras árvores, quietas ele as deixou. Rondava o pé de capiá. O guriantan
abriu as asinhas eufóricas, afinou o bico e cantou forte. Romildo se encantou.
Pensou em Janaína. O passarinho, ali, pertinho. Lançou a mão, o passarinho,
rápido, avoou. Voou para longe no vazio, assoprado pelo vento que o levou. E Romildo,
não achando nada no vazio, desequilibrou-se e de lá do alto seu corpo
despencou. Ainda ouviu o badalar dos sinos da igreja de Nossa Senhora das
Candeias chamando o povo para a procissão. Ainda ouviu, na queda, o farfalhar
agoniado das folhas do pé de capiá. E o último som que ouviu foi o do próprio
corpo caindo veloz, cravando-se nas estacas da cerca.
Na igreja, o sino badalava, e
não havia cortejo nenhum para a alma de Romildo, que já ia longe, travada, para
nunca mais...
No mato um bacurau piou...
***
Trecho de O Pescador de Almas
Foto de Roberto Harrop - Guriatã ou Gaturamo verdadeiro (Euphonia violacea) - retirada do Flickr
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