Abriu os olhos com o cantar do galo num terreiro
distante. O negrume da noite ainda se escondia sob as folhas das gameleiras e
dos cacaueiros. No céu brilhava a estrela d’alva. Na rua um vozeirão de homem
convocava para a pescaria.
— Ei Lapinha, acorde, tá na hora.
— Babo, ei, Babo, vambora, rapaz,
tá na hora.
No mesmo horário vinha João do
barco avisando quem fosse viajar para Camamu que estava na hora de acordar. A
maioria já estava com o café tomado e com a bagage pronta. João do barco
só chamava uma vez. Chamava e descia para o porto. Muitas vezes o rio estava
seco e os viajantes tinham de andar até a boca do rio, na coroa, onde o barco
estava ancorado. Se o rio estivesse um pouquinho mais cheio, mas não tão cheio
que o barco pudesse entrar ou não suficientemente seco para que os passageiros
pudessem seguir a pé, os viajantes tomavam uma canoa emprestada ou então
pegavam carona com algum pescador que estivesse saindo e iam até o barco. As
mulheres iam acocoradas no fundo da canoa. Os meninos já maiorzinhos
equilibravam-se de pé. O remador ia atrás, na popa, também de pé. E fincava o
remo na areia do fundo do rio e empurrava, a canoa avançava desequilibrando-se
um pouquinho e as mulheres faziam ui, os meninos davam um risinho
fazendo pouco do susto que as mulheres levavam. Os maruins atacavam a pele. Os
sururus na lama do mangue estalavam. Os aratus e os caranguejos espiavam com
seus olhos compridos. E o cheiro do mangue e do mar era tão forte! Era a
natureza em todo a sua vitalidade. E o corpo do remador também era forte.
E sua pele era da cor da lama do mangue. O remador era uma extensão da água do
rio e da lama do mangue. A água do rio era salgada e inundava o ar com seu
cheiro forte de maresia. Assim também era o homem, do seu corpo transpirava um
suor salgado e o cheiro que saía junto era cheiro de mar, de sal, de lama. O
homem fazia parte daquela natureza. E ambos, homem e natureza, conviviam
harmonicamente, interpenetrando-se, confundindo-se, fundindo-se um no outro. O
homem feito de mar e lama ia na popa, e do seu rosto negro espiavam dois olhos
brancos... uma garça piou assustadiça e avoou no céu...
O homem feito de mar e lama
apoitou a canoa do lado do barco. Os passageiros, os homens com jeito, as
mulheres desajeitadas, transpuseram-se para a embarcação que os levaria a
Camamu. O homem da canoa puxa a poita, dá um empurrão no bojo do barco e a
canoa se afasta disparada. Já vai lá longe, beirando o mangue, confundindo-se,
fundindo-se, sumindo-se... só se vê um céu azul emborcado no mar, e um
manguezal verdejante a perder-se de vista...
* * *
João do barco gira a manivela
do motor e o barco treme nervoso. O eco seco da máquina bate no mangue e o tá
tá tá tá tá ressalta, ressoa, é o atabaque da mata, tá tá tá tá tá.
No espelho trepidante do mar
avoa uma garça... lá no profundo das águas, perto do céu azul...
Trecho de O Pescador de Almas
Uma prosa de grande qualidade.
ResponderExcluirAbraço
Que bonito, Flamarion! É poética essa ligação do homem com o mar, com a natureza. E você a transmitiu de forma tão bela. Parabéns, meu amigo. Um abraço.
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