A tarde foi caindo devagar em Aldeia da
Purificação. Os cigarrões no fundo do quintal silenciaram de vez. Até parecia
que tinham combinado a hora de parar. O escuro veio escorrendo do céu e logo
foi se espalhando no ar, penetrando nos recantos. Ouviu-se o motor da usina. A
luz amarela e fraca dos postes de madeira se acendeu.
Lindóia, triste, não sentiu vontade
de sair. Também, ir para aonde? Da janela de sua casa, ela olhou a rua. Do
outro lado, na praça, o bar de Manuel de Olindina aberto. Como fazia todos os
dias, sempre no mesmo horário, ele punha a radiola para tocar um de seus velhos
discos. E ela era obrigada a ouvir aquilo. O bar vazio. Mais logo é que
chegavam os que bebiam pinga. A música avisava-os de que Manuel de Olindina já
tomara seu café e que agora o bar estava aberto. Eram os mesmo de sempre. Um
vinha gastar o pouco que ganhara com a venda do peixe; outro, o que conseguira
com o serviço de pegar água na fonte. Seu João Celi não bebia, não fumava e nem
se parecia com os poucos que se consumiam no bar. O que o atraía ali naquele
bar era Rita, a mulher de Manuel de Olindina. Puxava conversa com ela, cheio de
bons princípios, pois chegava com uma conversa de moral, de respeito aos
santos, do que se devia e do que não se devia fazer. E ela acreditava, ou
fingia acreditar que ele era um homem bom.
- A senhora é uma mulher boa, dona
Rita. – ele dizia.
Ficava falando essas coisas
agradáveis. E ela o colocava como exemplo de bom marido, sim, pois o santinho
era casado.
− Santinho?
Isso mesmo. Fingia tão bem que até ele
mesmo acreditava que era verdade as coisas que pregava. Mas, ao chegar em casa,
entocando-se no banheiro, ou mesmo na rua, em um lugar escondido qualquer,
aliviava-se pensando nela.
− Ora, mas isso não é errado.
É verdade, isso não é errado. Todo
mundo, de uma forma ou de outra, acaba fazendo isso. Essa é a história que
ninguém conta. O que se contava dela, da mulher de Olindina, era outra coisa.
Que ela era boa, isso ninguém contestava. Seu João Celi que o dissesse.
- Boa. Boa demais essa mulher – ele
dizia com os olhos lambidos.
O que se propagava era que seu João
Celi tivera um caso com ela. Mas o caso só caiu na boca do povo depois que ele
foi morar na cidade dos pés juntos. Foi Sebastião de Caboquinha quem espalhou o
fato.
− Como ele soube isso? – pergunta-me
você.
Quem sabe! Sebastião de Caboquinha,
desentendendo-se com Manuel de Olindina porque este não quis lhe vender cachaça
fiado, fez cara de ameaça e, vingativo, espalhou:
- Seu João Celi comeu Rita de Manuel
de Olindina.
“Pronto que a desgraça está feita.”
– pensa você.
Que nada! Olindina era homem de sangue
fraco. Nem espumar, espumou. Quis racionalizar um caso que era mais para
porrada, para peixeirada. Nem foi capaz de atocaiar Sebastião de Caboquinha em
qualquer esquina.
− Por quê?
Porque era um frouxo. Sabe que providência
o corno tomou? Prometa que não vai rir.
−
Vou rir nada!
− Vou levar o caso para a justiça! −
o abestalhado ameaçou Sebastião.
− Ha, ha, ha, ha, ha!
Você disse que não ia rir. Mas não
foi só você quem se escangalhou de rir assim. Sebastião riu assim. Todos rimos
assim. Até mesmo Lindóia, que tinha o ar triste naquela noite, ali, sozinha,
olhando o bar de Olindina, até ela começou a rir gostoso.
“Rita dando para o defunto... Rita,
mulher fogosa... Ai, ai... E seu João
Celi? Como é que vão prender ele, se ele está morto? Hum, esse Manuel de
Olindina é mesmo um idiota...” – ela ficou pensando.
- Está rindo de que, Lindóia? –
perguntou Manuele, que tinha acabado de chegar de Maraú naquele instante, na
lancha toque-toque de Tuninho.
- Oi, Manu. Veio ver sua vó Lalá,
foi?
- Vim ver ela, sim; e você, tá boa?
Ah, deve estar, tá rindo.
- Tô boa, sim; não estou rindo de
nada não; estava só me lembrando de um caso.
- Ah, bom. Então já vou, ufa, essa
ladeira do porto mata qualquer cristão. Até logo, Linda.
- Até, Manu.
Manuele desceu a rua deserta.
Lindóia voltou a seus pensamentos, e de novo começou a rir. E nem foi nada, só
a lembrança de um caso que, por assim dizer, estava morto. Mas, bastou lembrar,
reviver a história, para que seu João Celi, que estava morto, de um salto
começasse a reescrever sua história de amor com Rita. A história, assim, não
morre, continua pulsando, e continuará enquanto houver quem a conte e reconte.
Mesmo com aparência de morta, ela sempre será viva na memória do povo.
- Esse seu João Celi, viu... –
Lindóia pensou alto, se rindo.
Moça à janela. Imagem de Claudio Gonçalves - www.cpousada.com.br
O cenário, as personagens, a forma de sentir, os pequenos grandes dramas, a janela...
ResponderExcluirMuito bom!
Abraço