terça-feira, 18 de setembro de 2012
Pescaria
João do Velho recostou-se na popa da canoa. Puxou o chapéu de palha e cobriu o rosto. O encontro que teve com José Reis, dias atrás, quando descia a ladeira do porto rumo à pescaria, veio-lhe atanazar o juízo. “Maldição.”
— Então, homem, de novo na casa de Rita? — João do Velho perguntou.
— Aproveitei que Terêncio viajou — José Reis respondeu.
— Mulher casada, homem. Tome cuidado.
Um pássaro piou, escondido no mato.
— Cruz credo! Cheguei arrepiar — disse João do Velho.
— Foi um bacurau. Há muitos entocados nos buracos.
— Ave agourenta...
— Não se impressione com essas coisas...
— Tome cuidado com Terêncio. Mas por que logo Rita, homem?
— E o coração tem tino para escolher, João? Uma porta se abre, o sangue bate, o Diabo vem, arruma a cama e está feita a tragédia.
— Não bote o Diabo no meio. Ele não tem culpa.
Chegaram ao porto. O céu ainda escuro. Os insetos noturnos cricrilavam. Vultos de aves sobrevoavam o manguezal. Maré enchente e o rio puxando com força. João do Velho desamarrou a canoa, presa num tronco afincado na lama do rio, jogou o remo e o samburá dentro da embarcação e a empurrou para a correnteza, que a arrastou. João do Velho ficou parado na beira do rio, assistindo a canoa se afastar.
— O que foi, João do Velho? Assustado?
— É que essa história pode acabar mal?
— Eu sei. Mas que posso fazer? Rita quer mais do que eu? A canoa está indo embora.
— Repito, mulher casada; mulher de Terêncio.
Entrou no rio. A água gelada pinicou as canelas do homem. Alcançou a canoa e trouxe-a, puxando por uma corda presa à proa. Repetiu:
— Ouça o que lhe digo: é casada.
— Eu sei de tudo isso, mas na hora perco a razão. Rita chega e me arrasta; quando vejo, já aconteceu. Foi ela quem me abriu a porta. E sou lá de ferro, João! Um trocinho dizendo “me coma” e o sujeito fazer beiço, recusar. Não mesmo. Qualquer um se atiraria de cabeça nesse abismo. Moça viçosa, João, cheia de ternura no olhar, mas que resplandece um fogo de dentro... Que homem se aguentaria? Só mesmo o Zezinho, que é afeminado e não gosta de mulher. Mas eu, eu caio é dentro. O diabo é que Terêncio, ao que me parece, começa a desconfiar.
— Bem, já vou. O rio está puxando com força; e remar contra a maré não é fácil. Até logo, José Reis.
— Até logo, João. Boa pescaria.
***
Um puxão no nervo o despertou. Abriu os olhos e inúmeras réstias de luz penetraram pelos furinhos do chapéu, magoando-lhe os olhos. Forte pressão na linha disse-lhe que um peixe acabara de morder o anzol. Ergueu-se depressa. Procurou sentir na pegada da linha o tamanho do peixe.
— É uma arraia grande, José Reis — ele disse orgulhoso, como se o amigo estivesse presente. — Tá vendo, homem? Tá vendo?
O peixe puxava muito e com força.
— Agora é só lhe dar linha. Isto é que é pescar. Vem, branquinha, vem.
Com a linha chegando ao fim, o pescador içou a poita e deixou a canoa livre, assim a pressão seria menor, evitando uma quebra desnecessária.
— Logo ela se cansa, José Reis. Em breve estará se debatendo aqui dentro da canoa. Sinta como é grande, sinta — e passa a linha para a outra mão — É mesmo enorme. Talvez a maior que já pegamos. Deve ter outras... Uma, apenas uma e tá bom, homem...
Longe o mar do canal se estendia prateado. E a garça que o sobrevoava, no bater das asas, era livre e leve.
A proa da canoa apontava o bico para os lados da Ponta de Caeira. Do outro lado do canal, a península de Maraú, um braço verde entre o Oceano Atlântico e o mar da baía de Camamu. Na costa, o mar revolto.
“Lá tu não vai, canoinha. Lá no mar da Costa, só as caçoeiras.”
Aos poucos os puxões do peixe foram enfraquecendo.
— Agora é só ir puxando devagarinho. Com jeito. Com arte. Veja, José Reis, veja, a mocinha se entrega. A mocinha do mar não resistiu às minhas investidas e vem comer aqui na minha mão. Veja, olhe só que linda.
A arraia estendeu-se no chão da canoa. Seus olhinhos mudos fitavam João do Velho. Logo procurou água e não encontrou. Debateu-se. Debateu-se até cansar. Até cansar. E descansou imóvel, aberta, deitada na frente do pescador.
***
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