Rio Barcelos

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terça-feira, 18 de setembro de 2012

Pescaria




João do Velho recostou-se na popa da canoa. Puxou o chapéu de palha e cobriu o rosto. O encontro que teve com José Reis, dias atrás, quando descia a ladeira do porto rumo à pescaria, veio-lhe atanazar o juízo. “Maldição.”
— Então, homem, de novo na casa de Rita? — João do Velho perguntou.
— Aproveitei que Terêncio viajou — José Reis respondeu.
— Mulher casada, homem. Tome cuidado.
Um pássaro piou, escondido no mato.
— Cruz credo! Cheguei arrepiar — disse João do Velho.
— Foi um bacurau. Há muitos entocados nos buracos.
— Ave agourenta...
— Não se impressione com essas coisas...
— Tome cuidado com Terêncio. Mas por que logo Rita, homem?
— E o coração tem tino para escolher, João? Uma porta se abre, o sangue bate,  o Diabo vem, arruma a cama e  está feita a tragédia.
— Não bote o Diabo no meio. Ele não tem culpa.
Chegaram ao porto. O céu ainda escuro. Os insetos noturnos cricrilavam. Vultos de aves sobrevoavam o manguezal. Maré enchente e o rio puxando com força. João do Velho desamarrou a canoa, presa num tronco afincado na lama do rio, jogou o remo e o samburá dentro da embarcação e a empurrou para a correnteza, que a arrastou. João do Velho ficou parado na beira do rio, assistindo a canoa se afastar.
— O que foi, João do Velho? Assustado?
— É que essa história pode acabar mal?
— Eu sei. Mas que posso fazer? Rita quer mais do que eu? A canoa está indo embora.
— Repito, mulher casada; mulher de Terêncio.
Entrou no rio. A água gelada pinicou as canelas do homem. Alcançou a canoa e  trouxe-a, puxando por uma corda presa à proa. Repetiu:
— Ouça o que lhe digo: é casada.
— Eu sei de tudo isso, mas na hora perco a razão. Rita chega e me arrasta; quando vejo, já aconteceu. Foi ela quem me abriu a porta. E sou lá de ferro, João! Um trocinho  dizendo “me coma” e o sujeito fazer beiço, recusar. Não mesmo. Qualquer um se atiraria de cabeça nesse abismo. Moça viçosa, João, cheia de ternura no olhar, mas que resplandece um fogo de dentro... Que homem se aguentaria? Só mesmo o Zezinho, que é afeminado e não gosta de mulher. Mas eu, eu caio é dentro. O diabo é que Terêncio, ao que me parece, começa a desconfiar.
— Bem, já vou. O rio está puxando com força; e remar contra a maré não é fácil. Até logo,  José Reis.
— Até logo, João. Boa pescaria.

***

Um puxão no nervo o despertou. Abriu os olhos e inúmeras réstias de luz penetraram pelos furinhos do chapéu, magoando-lhe os olhos. Forte pressão na linha disse-lhe que um peixe acabara de morder o anzol. Ergueu-se depressa. Procurou sentir na pegada da linha o tamanho do peixe.
— É uma arraia grande, José Reis — ele disse orgulhoso, como se o amigo estivesse presente. — Tá vendo, homem? Tá vendo?
O peixe  puxava muito e com força.
— Agora é só lhe dar linha. Isto é que é pescar. Vem, branquinha, vem.
Com a linha chegando ao fim, o pescador içou a poita e deixou a canoa livre, assim a pressão seria menor, evitando uma quebra desnecessária.
— Logo ela se cansa, José Reis. Em breve estará se debatendo aqui dentro da canoa. Sinta como é grande, sinta — e passa a linha para a outra mão — É mesmo enorme. Talvez a maior que já pegamos. Deve ter outras... Uma, apenas uma e tá bom, homem...
Longe o mar do canal se estendia prateado. E a garça que o sobrevoava, no bater das asas, era livre e leve.
A proa da canoa apontava o bico para os lados da Ponta de Caeira. Do outro lado do canal, a península de Maraú, um braço verde entre o  Oceano Atlântico e o mar da baía de Camamu. Na costa, o mar revolto.
“Lá tu não vai, canoinha. Lá no mar da Costa, só as caçoeiras.”
Aos poucos os puxões do peixe foram enfraquecendo.
— Agora é só ir puxando devagarinho. Com jeito. Com arte. Veja, José Reis, veja, a mocinha se entrega. A mocinha do mar não resistiu às minhas investidas e vem comer aqui na minha mão. Veja, olhe só que linda.
A arraia estendeu-se no chão da canoa. Seus olhinhos mudos fitavam João do Velho. Logo procurou água e não encontrou. Debateu-se. Debateu-se até cansar. Até cansar. E descansou imóvel, aberta, deitada na frente do pescador.

***

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

O sofrimento de Sônia


***

Quem soube da morte de Janaína e tinha consideração por ela e pela família, veio transmitir seus sentimentos. Alguns vieram por curiosidade.
Seu Edgar chegou e disse, um ar condoído:
— Meus sentimentos eternos, dona Marízia e seu João.
Depois foi a vez de Olica falar:
— É isso mesmo: a única certeza da vida é a morte. O resto, o resto é breu...
Donga se aproximou do corpo de Janaína, olhou-a de alto a baixo, suspirou e disse:
— É, meus amigos, a perda é grande. Mas Deus sabe o que faz. Se ele quis ela para Ele... quem somos nós, hem, quem somos nós? Tão novinha... Mesmo morta, conseva uma viçosidade...
Logo todos mantiveram-se quietos. Adotaram feições piedosas e nos seus olhos já havia prenúncio de lágrimas. É que a mãe da morta surgiu de repente. Mas calma, como se em transe. Todos queriam compartilhar a dor, sofrendo com ela. Todos chorosos.
Aproximou-se do corpo da filha. Inclinou-se e a beijou demorado no rosto. Quanta dor nessa paz. Quanta diferença de quando se atracaram, quando Janaína estava em crise. Sua menina não queria dizer aquelas palavras malditas. Ela estava doente. Sim. Sua santinha estava possuída por... A mulher teve um sobressalto e seu corpo pesou sobre a cama de molas, que emitiu um gemido assustador. Ergueu-se. E todos puderam ver a dor da mãe que perde um filho. As faces  encharcadas de lágrimas e a marca da dor estampada no semblante. Mesmo desnorteada, a mãe acariciou o rostinho da filha, e, sem tirar os olhos dela, perguntou a seu João do Velho:
— Seu João, o senhor se recorda que Marcolino de Caboquinha roubou o rádio da finada Zulmira?
— Lembro. Claro que me lembro. Quem não se lembra disso? Ele roubou o  rádio da velha, que era cega, e foi vender em Tapuia. Mas que importância tem isso agora?
Donga se lembrou do fato e completou:
— Foi até o Zé de Celso de dona Antonina com seu Dagoberto quem comprou o rádio roubado. Não foi isso mesmo?
— Foi.
 Pinga-Fogo, curiosa, quis saber:
— Então?
—Então me diga, seu João: se Marcolino de Caboquinha, que é um ladrão, tivesse consciência da culpa e quisesse se punir e tivesse que cortar um órgão do corpo, que órgão ele teria de cortar?
— A mão ladrona, claro.
Olica  disse mais:
— Ou as duas, se forem cúmplices uma da outra. Mas por que essas perguntas, dona Sônia? O desgraçado não tem consciência não, por isso nunca haverá punição para ele. Continua é se apossando das coisas alheias. Ladronagem é herança de sangue. O pai dele e o pai do pai dele roubavam. O menino herdou esse bem maldito..., ou será esse maldito bem?... sei lá como dizer isso... Tudo da vida de cada um está no sangue...
— Pois bem, seu João. E se alguém, por maldade, injuriar ou caluniar um outro alguém, e, com consciência de culpa quiser se punir, que órgão do corpo esse alguém cortaria?
— Oxe, mas que pergunta? A língua, claro. Mas não estou entendendo onde a senhora quer chegar.
— E se um homem tirar uma moça de casa, lhe fizer mal e não assumir nenhum compromisso com essa moça e, sendo pego em consciência de culpa, hein, que órgão do corpo esse homem, ele mesmo, teria de cortar fora?
Donga se adiantou e disse:
— Essa eu respondo. Ele teria de cortar a... ui, só de pensar dói.
João do Velho reclamou com ela.
— Ora, dona Sônia, mas que pergunta mas sem cabimento!
— Vamos, responda, seu João.
— Vou responder nada! Eu respeito a senhora e...
— Preste bem atenção, seu João do Velho, eu, esta mulher que o senhor está vendo aqui, esta mulher não merece respeito nenhum. Entendeu? Respeito nenhum. Eu sou uma mulher que foi enrabada pelo Cão. Uma mulher que não merece viver, e... mas isto seria um prêmio e não um castigo... O senhor percebe?
— Mas o que é isso, dona Sônia?! “Meu Deus, ela está louca.” Vamos, pare com isso. A senhora sempre foi moça de boa família. Casou-se com homem sério. É mulher respeitosa. Como alguém poderia imaginar uma coisa dessas da senhora?
Vendo que seu João do Velho não ia responder a pergunta, ela mesma respondeu:
— Cortaria o membro fora, seu João.
Seu João sabia que dona Sônia não estava boa da cabeça, mesmo assim ele a respeitava, e por isso achou melhor se afastar.
Antes de seu João sair, ela virou-se, afastando-se da filha, pegou o braço do homem e perguntou:
— Mas e eu, seu João, vamos, me responda, que órgão do corpo eu posso arrancar fora, hein? Sei o mal que fiz, mas não sei exatamente onde a fonte do mal se encontra em mim.
Todos os presentes calados. Janaína, agora, iluminada pela luz de uma vela, esboçava leve sorriso.
Sônia soltou o braço de seu João do Velho e saiu num caminhar pesado pelo corredor comprido e escuro. Ela apertava a cabeça com as mãos, como se quisesse esmagá-la.
***
Continuação de O Pescador de Almas.

sábado, 28 de julho de 2012

Criaturas do deus



                                                                   ***
Dona Benedita vinha chegando. Olzinha havia se sentado em um tamborete ao lado de Janaína. Do outro lado da cama uma vela acesa. O ar empestado do cheiro da vela trouxe à lembrança o ambiente da igreja de Nossa Senhora das Candeias. A imagem que vinha à mente não era logo a de Janaína despida se oferecendo aos santos. Havia uma ordem no pensamento que preparava a cena. Primeiro era a igreja cheia, todo mundo com calor. Padre Ângelo realizando o ofício divino em latim. Ninguém entendia o que ele dizia. Agora, ali no quarto, os olhos fixos no corpo de Janaína, ninguém nem mesmo ouvia no pensamento a voz do padre. Algo maior e mais importante punha a voz do padre muda na imaginação. A visão era forte. Via-se a feição horrorizada do padre; via-se o corpo moreno e viçoso de Janaína; via-se sua carinha de anjo; via-se tudo de acordo com a presença de Janaína, ela era o centro, ela era como Nossa Senhora lá no altar. Mas ninguém via Nossa Senhora não. Esta já estava salva. Ou perdida, segundo dona Benedita. O que todos olhavam era Janaína nua. Ela que representava tão bem a Virgem Maria. Agora, nos olhos de todos, ela era a Virgem Janaína, a pecadora, a perdida. E a visão de todos estava atrapalhada. Viam Janaína viva e nua, de pé na igreja, e logo, arregalando os olhos, viam Janaína bem na sua frente, vestida e estirada na cama, morta. Olica, que vira Janaína na igreja e a via agora, não sabia o que estava lhe acontecendo, pois pegou-se excitado, desejando o corpo de Janaína. Envergonhado e com a mão na frente do membro, ele saiu do quarto. Seu Edgar foi atrás. E Donga continuou mais um pouco. Havia algo que ele não conseguia entender. Falou baixinho:
— A vida é destrambelhada. Como pode, meu Deus, como pode? Tanta formosura desperdiçada, jogada fora, para servir de banquete aos vermes... A vida é um desatino.
Resolveu que ia comer Ana Rita, a mulher de seu amigo Terêncio, que andava se arreganhando para ele. Não era nenhuma beldade, nem moça e nem santa, mas que, por ser casada e por ter um rabo, de certa forma era proibida.
— O desejo é forte no pecado. Deus e Terêncio que me perdoem. Vou pecar. Sou humano.
E saiu.

Foi nessa hora que Olzinha atinou para a vida. Pois ela não estava pensando em Janaína nua na igreja em relação com o corpo estirado na cama, não. Ela pensava em Janaína sim. Mas elas estavam tomando banho no rio. Janaína tão linda com o biquíni que Olzinha lhe dera. Sorrindo tão cheia de vida. E agora, morta. Começou a chorar.
Dona Benedita, que ainda vinha chegando, viu o estado da filha e disse, sentida:
— Ô, minha filhinha, eu disse para me esperar. Tenho um lencinho aqui no porta-seios, tome, enxugue as lágrimas.
— A vida é errada, minha mãe. A vida é errada. Seu Euclides, que é velho e está com o corpo imprestável, não morre. Já minha amiga Jana, que era jovem e bonita... ah, minha mãe, olhe só o que aconteceu com ela... Me diga, me diga se esta merda de vida tem sentido...
— Ô, minha filha, não diga blasfêmia. Deus está ouvindo... São os desígnios do Pai. Ele é onipotente, Ele sabe o que faz... Ele é onipresente, hum, hum... Você precisa ler o livro sagrado. E tire a merda da boca.
— Será, minha mãe? Será que esse Deus sabe o que faz?... Ele deve tá é dando risada da gente...

***
 Continuação de O Pescador de Almas.

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Pescadores


***

 Chegaram ao bar de Preto. Lá estavam pescadores falando mentiras, contando vantagens, soltando palavrões, falando putaria, enfim, praticando a verdadeira filosofia da vida. Entre eles estava Terêncio. Encontrava-se sóbrio. Juarez não tinha opinião e repetia todas as asneiras que ouvia. Djalma escorava-se no balcão e todos juravam que cairia caso arriscasse um passo. Isso se repetia todos os dias. Preto não bebia e não fumava, caso contrário, imprudentemente beberia e comeria ele mesmo o seu ganha pão.
Enfim, havia outros pescadores que, como os já citados, ocupam um plano secundário na história.
Mas Terêncio parecia não se dar conta disso. Tentou dar um ar nobre à sua postura de homem rude. O que desejaria o molambo? Sabemos o caso de sua mulher com José Reis. Mas os outros que bebiam no bar de Preto pareciam desconhecer a traição de Rita. Abriria então este homem a boca? Difamaria a mulher, jogando-a na boca do povo? Não. Claro que não faria tal asneira. E ele próprio, não conta? Claro que conta. Não gostaria de ser apontado na rua:
— Olhe, lá vai Terêncio, o corno.
Outro:
— Veja, senhor Emanuel,  lá vai Terêncio, o chifrudo, passar a noite na roça.
É verdade. Terêncio ultimamente vinha com essa ideia de dormir na roça. E tudo por causa das formigas, que lhe acabavam a plantação. De noite ele as seguia até ao formigueiro. Botava a mangueira na boca do formigueiro e bombava a formicida lá dentro do buraco. Não devia se esquecer de fechar a boca do buraco, para impedir que entrasse ar, desse modo elas morreriam. Mas sempre depois aparecia mais e mais formigas, cada qual com seu ar patriótico carregando a bandeirinha verde. Então as idas de Terêncio à roça estavam explicadas. Claro que estavam. O que não se explicava era como podia um homem abandonar sua mulher e ir meter-se com formigas em noites de frio. Não estava ele, dessa forma, abrindo a porta ao imponderável? Claro que estava. Mas este é um jogo armado em tabuleiro escuro.
Terêncio, vestido de nobre em espírito rude, foi até a mesa onde estavam João do Velho e José Reis. Disse:
— Boa tarde, seu João; boa tarde, José Reis. Posso me sentar um pouco aqui com vocês?
João do Velho se adiantou e disse:
— Claro, Terêncio. Nem precisa perguntar. Vamos, puxe o tamborete e se sente.
Encobriu o pensamento que o levava a aproximar-se dos dois com:
— A pescaria hoje foi boa, não foi João do Velho?
— Não posso reclamar. Só uma arraiazinha, mas que me deu um trabalho...
— É João do Velho, pescaria boa é assim, quando o pescador usa a experiência aliada à inteligência. Não é não?
— Inteligência e experiência, que nada! Dei foi sorte.
— Você, além de sábio, é modesto, João, por isso todo mundo gosta de você.
Terêncio, dirigindo-se a José Reis, pergunta:
— E você, José Reis, também pegou alguma arraia?
— Não. Peguei foi tainha de bomba. Explodi todas elas. Não tenho experiência, nem inteligência e, quer saber, Terêncio, nem paciência. E mais, exploda-se quem não gosta de mim.
Terêncio fez que não entendeu o tom arrogante de José Reis. Continuou:
— É, há quem goste de fazer da vida uma aventura, não se importando com o estrago que cause.
— Oxe! Tá me repreendendo, Terêncio?
— De forma alguma. Aliás, quer saber? Tô lhe repreendendo sim. Não é certo um sujeito estragar um bem que não é seu, e...
— E o quê, Terêncio? O que é que você vai fazer?
João do Velho procurou desviar o rumo e a temperatura da conversa:
— Parem vocês dois com esta conversa que não leva a nada.
José Reis, já esquentado, queria mais era que tudo fervesse.
— Com certeza que levará à porra de algum lugar, sim, João do Velho. Conversa de mulher e homem, sempre dois comem. E conversa de homem com homem, sempre um some.
João do Velho riu do amigo, que saiu com esse dito vagabundo.
— Vamos ver quem vai sumir, José Reis. Vamos ver. Fique aí segurando sua bomba... — Terêncio disse em tom de ameaça. Levantou-se e saiu do bar.
José Reis fez menção de avançar no pescoço do desgraçado. João do Velho o conteve, dizendo:
— Calma, homem, calma. — e pediu: — Preto! Manda uma gelada!

***
Capítulo do livro João do Velho

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Janaína enfeitiçada



***
Janaína acompanhava o cortejo descalça. Os cabelos compridos caíam-lhe por sobre o rosto. Quem apreciava a procissão das janelas, perguntava-se:
   Quem é aquela vestida de Virgem Maria?
E respondia-se:
— Será Damiana de Tuninho? Ora, mas o que digo, Damiana de Tuninho saiu de casa com Zé Pedro. Mas, então, quem será? Ei, Miguel de Rola, aquela vestida de Virgem Maria, quem é?
   É Janaína de Sônia.
A mulher da janela, então, muito orgulhosa pela santa, que estava bem representada, dizia:
— Ah, isto sim é que é o correto, moça virgem, donzela, pura, que nem a Virgem Maria... Meu lenço, cadê, cadê meu lenço, diabo, olhe os olhos vertendo água de novo...
         Seu João de Eleutério seguia a procissão de joelhos e chamava a atenção de todos.
   Foi promessa que ele fez, foi?
— Então você não sabe? Prometeu que, se ficasse bom do reumatismo que lhe enferrujava os ossos, andava toda a procissão de joelhos.
   E pra que santo ele fez a promessa?
— Bem, aí é que a coisa complica, pois se Janaína é santa, isso lá eu não sei não... mas o resultado é que ele ficou bom. Não cansa de encher a boca e dizer: “Foi a Virgem Janaína que me curou”.
* * *
Já era noite quando a procissão chegou à igreja. Os foguetes subiam rasgando o céu, e brilhavam, e estouravam, e crianças corriam a pegar suas flechas, e nova subida, novo relâmpago, nova trovoada. Seu Dudu maltratava a matraca, e bate, bate, bate, bate. O sino badalava aturdido, e vinha gente, e entupia a igreja, e fazia calor, e mulheres gordas se abanavam com as mãos e davam pequenos soprinhos. Os santos, quietos, iluminados pelas velas e pelos olhos dos devotos, ouviam conversas:
   Santo Inácio só sai do nicho quando ele quer.
— Quem tem filho morto, quando vê a face de Nosso Senhor Morto no caixão, chora.
— Bom Jesus dos Passos mete medo nas crianças com aqueles cabelos compridos e com aquele vestido lilás e com aquela posição acorcundada. Minha avó tinha medo, minha mãe tinha medo, eu tive medo, meu filho mais novo tem medo, acho até que minha bisavó e também a mãe dela, as duas tinham medo. É um medo antigo.
— Essa igreja, essa mesma, quando foi construída, isso lá pelos idos de mil seiscentos e tanto, foi construída com a frente voltada para o mar, mas, dias depois, o povo ficou abismado, a igreja estava com a frente voltada para o vilarejo. O povo respeitou a vontade da santa, deixou a igreja com a frente voltada para o vilarejo, essa mesma, lá pelos idos de mil seiscentos e tanto...
— E Nossa Senhora das Candeias, olhe como está bonita... Aquele cordão de ouro foi finada Rosa de Queno que deixou para a santa, é de ouro puro. Será que alguém é capaz de roubar? Cruz credo, me deixe me benzer que isso é pecado... Mas, só de imaginar alguém surrupiando o cordão de ouro de Nossa Senhora das Candeias, já posso ver a mão do infeliz ficando durinha, não só uma, mas a outra também, pois a outra mão foi cúmplice, se ainda batesse na mão ladrona e disesse: “Pare! Que roubar é pecado! Ainda mais roubar a uma santa... é pecado!” Mas não, foi cúmplice, não ouviu o que diz o livro sagrado: “Não deixe que sua mão...” Será a esquerda ou a direita? Pois, sim, sim, ouçamos o que diz a bíblia: “Não deixe que sua mão direita saiba o que faz sua mão esquerda”. Porém, não há cúmplice inocente, ora, o que digo, se é cúmplice, claro que não é inocente. Não apenas a outra mão, a cúmplice, ficará dura, mas também as pernas, os olhos, todo o corpo, aliás, melhor, para todos os efeitos, a alma, também a alma, está ficará dura. Veja o caso de...
   Feche a matraca! Aí vem padre Ângelo.

* * *
O assistente do padre anda para lá e para cá embalançando um incensador, logo o ar fica impregnado de fumaça. As velas queimam nos castiçais e suas chamas de um ouro antigo banham as faces dos santos e deixam entrever os detalhes, também dourados, do altar barroco. O rapaz que viera de Maraú para tocar o harmônio, acompanha a Ave Maria que as moças treinadas por Pureza cantam. O povo dentro da igreja faz silêncio, mas, mesmo com todo o velado respeito à missa rezada em latim pelo padre, ainda assim se ouve um murmurinho abafado. Faz calor e algumas mulheres já ensaiam passar mal, pois se abanam com as mãos e bufam pequenos sopros de ar.
Sobre uma cadeira de espaldar, sentada ao lado esquerdo do padre, está Janaína. Tem a cabeça curvada, os cabelos negros, longos e encorpados caídos para a frente, tapando-lhe o rosto. Um longo vestido branco descai-lhe sobre o corpo. As mãos, as mantêm cruzadas sobre o ventre.
O padre começa o sermão, com seu sotaque italiano, falando das graças de Deus.
Janaína está quieta sentadinha na cadeira, as mãos cruzadas sobre o ventre, o rostinho inocente escondido nos cabelos. Ouve o padre falar no ciclo da vida.
Na cabeça de Janaína, dentro do seu corpo, no âmago de sua vida, começa a se formar um turbilhão. Uma coisa negra que vem lá do fundo irrompendo, rasgando, tomando conta de toda sua alma. Não pode ser o espírito divino. O espírito divino viria lá do alto, em forma de luz, e não essa lama fétida que brota das profundezas.
Ouve padre Ângelo maldizer as coisas pecaminosas, ameaçando-as com a mão pesada de Deus. Janaína escondeu um risinho cínico no canto dos lábios. Ninguém viu, e, se visse, ninguém acreditaria que fosse um riso de desdém, de pouco caso, de disfarçada chincana. Todos acreditariam fosse uma graça de felicidade, uma luz enviada pela Virgem Maria nos lábios daquela que lhe representava tão bem. Janaína descruza as mãos do ventre e as leva até as coxas, ergue um pouco a cabeça, jogando-a lentamente para trás, estufa o peito e, no exato momento em que o padre louva a Deus e toda a plateia sente a presença Dele, Janaína, executando um movimento delicado, ergue-se lentamente e, com o sorriso mais doce do mundo estampado na boca e nos olhos, mira o teto da igreja e, após um curto espaço de tempo, volve o olhar em direção ao padre, molha os lábios com a língua e num movimento autômato, dá um passo à frente e mira as pessoas dentro da igreja. Todos reparam nela. Supõem que seja uma cena teatral, um número ensaiado por Pureza, um incremento a mais na festa de Nossa Senhora das Candeias. O povo está emocionado. Padre Ângelo olha desconfiado. Que novidade será essa? A igreja silencia. No ar ouve-se apenas a música do harmônio tocado pelo rapaz que viera de Maraú. E a música é envolvente. E a plateia estática, atenta, esperando um desfecho. De repente as mulheres gritam, tapam os olhos, os homens arregalá-os para cima de Janaína. Padre Ângelo se benze enquanto guarda nos olhos a linda imagem de Janaína. Alguém grita lá do meio do povo:
   É o Diabo! Ela está com o Diabo no corpo!
E logo todos o imitam:
   É o Diabo! Ela está com o Diabo no corpo.
Janaína parece não ouvir. Vira-se para o lado de Bom Jesus da Cana Verde e, num gesto de ofertamento, abre os braços e descamba a cabeça para trás, como se fosse uma mulher oferecendo-se a um homem. O Bom Jesus da Cana Verde tem a feição resignada de quem sofre. Gotas de sangue pingam da coroa de espinhos colocada sobre sua cabeça. A moça oferta-se e ele com aquela feiçãozinha pra cima dela, como quem diz: “Eu te perdoo, minha filha”. O povo indignado.
   É o Diabo! Ela está com o Diabo no corpo!
Padre Ângelo não sabe o que fazer. Pureza tem que tomar uma providência. O vestido da Virgem Maria caído no chão. Pureza corre a pegá-lo. Janaína agora oferta-se a santo Inácio. O santo resiste bem, tem os olhos pregados num livro santo que tem nas mãos e não deita o olhar para cima de Janaína. Faz que não é com ele, que aquela obscenidade não lhe diz respeito. O outro padre que dê um jeito. Bom Jesus da Cana Verde, que é Jesus, não fez nada, então é ele que ia fazer. Não fez nada, ficou foi lá grudado no seu nicho, pois de lá ele só saía quando bem entendesse.
Pureza volta correndo e Janaína, agora dando as costas à multidão que se mantinha estupefata na igreja, abre os braços mais uma vez e oferta-se à Nossa senhora das Candeias. O povo agora já não vê nada. Pureza cobriu a menina, sim, pois ela estava completamente nua, e a arrastou para a sacristia.
* * *
Todos contaram depois:
— Janaína estava com o Diabo no corpo. Ficou nuazinha na frente de, primeiro na frente de Bom Jesus da Cana Verde e, depois, na frente de santo Inácio. Até para Nossa Senhora das Candeias ela se amostrou. Onde já se viu isso? Em que mundo nós estamos? Janaína com aqueles peitos... aquela cara de santa... aquelas nádegas... Você viu os peitos dela, viu? E a cara, você viu que cara? Dos lados branquinha, e no meio aquela floresta negra... Ai que pecado... Cruz credo! Deus que me livre de pensar esses pecados... Ai que eu não aguento... com licença que vou ali...
— Mas ela não podia mesmo fazer aquilo... e logo vestida de Virgem Maria... Sei não, viu... acho que Janaína vai ser queimada no inferno...
— Ela já foi castigada... então você não viu as lapeadas no corpo dela... Foi Bom Jesus da Cana Verde que lapeou o corpo dela.
— Pior que foi mesmo! Primeiro foi ela lá, nuazinha... aquele corpo todo... e depois os olhos de Bom Jesus da Cana Verde marcou o corpo dela... a mesma coisa como um animal é marcado, a ferro e fogo. Deus, sim, Deus, porque Bom Jesus da Cana Verde é Deus, Deus marcou o corpo dela, como se ela fosse uma besta... Mas foi assim, rapaz, na horinha, ficou nua, Deus pá, chicoteou ela... Eu é que nem quero pensar mais nisso... Deus castiga... Pior é que é difícil afastar o corpo nu de Janaína de dentro da cabeça... até parece que grudou no pensamento...
— Esses pensamento é assim mesmo, gruda na cabeça. Tem que tomar muito banho e lavar o corpo com bastante sabão pra sair.
— Oxente! Você ta doido? Doido e burro. Onde já se viu limpar o pensamento com água e sabão?
— Ignorante e burro é você, pois outro dia eu ouvi seu Zé de Noite alertar:
— Se a alma e o coração sujos estão, dê ao corpo água e sabão. Se o lado de fora limpo está, no lado de dentro fica a impressão. Não é reza e não é nada, mas, para quem não sabe rezar, eis aí uma boa oração.
***
(de O Pescador de Almas) 

sábado, 2 de junho de 2012

Sr. Centelhas



SR. CENTELHAS

I

O sono que tive não foi reparador, ao contrário, levantei-me bem cedo, quando não havia sol e as luzes dos postes ainda se encontravam acesas. Não pude compreender como dormira tanto, sim, pois desde às sete horas do dia anterior que eu dormia. No entanto, tinha o corpo quebrado, como se acabasse de chegar em casa de madrugada, voltando de uma festa, onde minhas energias tivessem se exaurido. Apesar do cansaço e do mal-estar, seria impossível deitar e dormir de novo. Portanto, decidido, fui ao banheiro e lavei apenas o rosto. Fazia frio, condição pouco estimulante para banho. Escovei os dentes e, enquanto fazia isso, olhava meu rosto num pequeno espelho quadrado de bordas alaranjadas, pendurado na parede, logo acima da pia. Vi um rosto sem expressão, marcado por olheiras escuras e um olhar apagado.  “Deus do céu! assustei-me. Mas que aparência horrível! Como pode alguém se apresentar com essa cara?” Fiquei uns dez minutos olhando aquela expressão apática, até que meus olhos mergulharam-se uns nos outros e, como se uma nuvem pairasse entre mim e o espelho, ofuscando tudo, subitamente não vi mais meu rosto.
Ouvi batidas na porta. Agora podia ver mais uma vez meu rosto no espelho, meu nariz, e meus olhos assombreados por profundas olheiras.
Enquanto atravessava a sala, olhei o relógio e me censurei por ainda não ter saído. E, mesmo sabendo ser toda minha a culpa por ainda estar ali no quarto, recriminei quem batia à porta com tanta insistência, cuja presença só me aborreceria ainda mais.
“Era só o que faltava! Sempre é assim. E agora não pode ser diferente.”
 Teria sido bom recompor-me, enfiar-me me algum estado de espírito que mostrasse realmente quem eu era. Mas nem pensei isso, tão rápido abri a porta e, quando vi, tinha em minha frente um raio de moça.
Com uma bandeja apoiada na mão esquerda e a direita erguida ainda em posição de bater, a moça não pôde controlar o impulso do murro que já dava na porta e, desajeitada, teve o corpo lançado à frente, esbarrando-o no meu. O murro passou-me zunindo na orelha esquerda. A bandeja, suspensa por uma reação automática dos músculos do braço, foi lançada para trás, o que provocou certo estardalhaço ao cair no chão.
Parados. Ficamos assim, assustados, um olhando a cara do outro.
“Que lindos e grandes olhos castanhos! Que boca! Que testa! E os cabelos! Ah, nada disso, testa pequena e bem feita; olhos realmente castanhos, mas não grandes, profundos, cansados, porém com intenso brilho e força, sob eles enormes olheiras enegrecidas, as quais contrastavam com a pele alva. Faltou o quê? Ah, a boca, não era carnuda, nem tampouco fina, regular, diria, não obstante rosada, de lábios firmes e, permita-me um deleite: frutinhas frescas. Os cabelos? Não sei, desalinhados...; nariz graciosamente arrebitado e, a respiração... bufos de égua em trote, bafejos expelidos de vulcão: um gozo...
E fala! (Que pena! Afastou-se um pouco de mim. percebe como eu estava um cretino?) vamos aos cumprimentos.
— Bom dia, senhor, vim trazer o café. Nádia. Meu nome é Nádia – e estendeu-me a pequena mão.
– Centelhas – apertei a sua com firmeza.
– Ai – gemeu, franzindo o cenho e o nariz, apertando os olhos e elevando um pouco o lábios superior.

Uma rosa vermelha,
com suas múltiplas reentrâncias, ensaiando,
no sofrer do nascimento,
o desabrochar.

(Agora era o lado poeta). Dois dentes destacavam-se bem no meio de outros que se seguiam perfilados.
“Que boca! Que fome de beijá-la!”
Contive-me, aspirando fundo.
Antes de falar outra coisa, limitei-me a olhar as horas.
— Queira me desculpar, senhor, devia ter vindo mais cedo, mas minha mãe, ela sofre de asma, passou muito mal essa noite, e a farmácia não abre antes das oito, especialmente nos dias de hoje abre ainda mais tarde, como se não fosse possível a alguém ficar acometido por algum mal justamente por hoje ser o dia que é. Tive que esperar abrir, comprar o remédio e voltar correndo em casa e medicar minha mãe, só aí então pude vir ao hotel e preparar o café dos hóspedes.
— Você já serviu os outros hóspedes? perguntei-lhe, muito sério.
— Oh, não, senhor, vim trazer primeiro o seu café. O senhor é novo por aqui e nem me conhece, não sabe que tenho uma mãe doente. Os outros hóspedes são todos conhecidos, eles vão entender se me atrasar. Acontece, às vezes, de eu nem precisar me explicar ou pedir desculpa pelo atraso, eles, muito cônscios que estão do estado de minha pobre mãezinha, simplesmente sorriem muito docilmente, como se me confortassem por ter uma vida difícil. Nessas horas me sinto feliz.
A moça me deixou desarmado. Usou um argumento estranho para me deslocar. “Diabos! Eu só queria recriminá-la, como faz um verdadeiro chefe.” Então, muito ligeiro e docilmente, perguntei-lhe se podia esperar um pouco, enquanto eu via uma coisa lá dentro. Na pressa com que tomei a decisão, bati a porta na sua cara e, rápido, corri até ao banheiro e parei em frente ao espelho. Tentei lembrar uma cara que fiz um dia, quando eu nem notei que Vera, minha ex-namorada, me olhava. Só depois que eu a vi, foi que ela disse:
—  Você estava com uma cara tão boa.
— Boa como? perguntei-lhe.
— Ah! Você parecia estar livre dos problemas do mundo.
Depois que Vera me disse isso, assim que pude corri ao espelho e tentei decorar aquela cara. Julguei que fosse uma cara simpática. Mas, dias depois, como eu insistisse em usá-la continuamente, a cara virou máscara, uma caricatura de mim. E, o efeito desastroso de usar uma máscara foi, um dia, Vera vir muito dolorosamente me dizer das suas dores de cólica e eu, inocente, mostrar-lhe uma cara simpática.
—   Você parece um bobo com essa cara, disse ela na sua dor.
A partir daí fiquei incerto se devia ou não usar aquela cara simpática. E não foi só isso, de certa forma a máscara grudou na minha memória, e de vez em quando ela vinha, insistente, querendo cobrir minha cara natural, que é a triste. Passei a ter outra personalidade, uma intrusa, uma indesejável.
E agora, ali no quarto do hotel, tentava lembrar com a máxima fidelidade aquela cara simpática, mesmo com a forte suspeita de que, tão logo eu a usasse, sobreviria a esse ato um grande e avassalador mal-estar. Peguei-a e vesti-a. Voltei correndo à sala e abri a porta. A moça não estava mais lá.
Aproximei-me da amurada do corredor e ouvi uma voz de homem gritando com alguém, lá embaixo. Desci para ver o que estava acontecendo.
— É mesmo impossível se tolerar coisas desse tipo, gritava senhor Moreiras, o proprietário do hotel, com a moça do café. E continuou: não se pode dar um dedo, a mão, e logo nos tomam o braço, o corpo, tudo, tudo; confundem tudo, liberdade com permissividade, cordialidade com amizade. E agora, e agora, mocinha, é capaz de ver a situação real? Olhe para mim. O que vê? Um liberal? Um amigo? Um cordial? Vamos, diga, o que vê? Ah, não diz nada! Pois bem, quem cala consente. E é justamente aí que está a burrice, poderia responder: “não, senhor, a melhor resposta é aquela que não se dá.” Mas fica calada, sem argumento, nem ao menos pôde me responder: “não, senhor, a melhor resposta é aquela que não se dá,” Hum.
—  Mas foi justamente o que fiz, senhor? disse a mocinha, muito recolhida em si.
— Quê?! Mas como ousa desafiar-me? Ah! logo vi, pertence àqueles tipos dissimulados! Espera que afrouxemos o laço e nos dá o bote.
Aproximei-me dos dois. Senhor Moreiras sorriu. A moça do café procurou recompor-se rápido e também sorriu. Fiquei tão envolvido com os gritos de senhor Moreiras que esqueci a máscara simpática. Portava agora tão somente a cara da alma.
– Vê, senhor... senhor..., dirigia-se ele a mim.
— Centelhas.
— Veja bem, senhor Centelhas, bonito nome, esta é Nádia, a moça do café. Repare bem, repare bem, se não o acordamos mais cedo é porque hoje é domingo; dorme-se até mais tarde aos domingos. O senhor dormiu bem? Ah, vê-se que dormiu, olhe só que cara esperta! Um passeio pela baía vai lhe fazer muito bem. Os manguezais são lindos, dizem, eu não acho, mas já que dizem, são realmente muito lindos. Tenho um barco a motor, eu mesmo posso levá-lo, seria um prazer. O senhor tem fome? Quer provar um pedaço de requeijão? Vou pegar.
O homem se apressou em ir pegar o requeijão.
A sós com Nádia, perguntei-lhe se aquele dia era realmente domingo. Ela respondeu:
— Oh, sim, hoje é realmente domingo. Poucos estabelecimentos estão abertos. Por isso esse silêncio. Não há o que se fazer domingo neste lugar. O senhor gostaria de passear pela baía?
— Oh, não, respondi, imitando-a na fala e no gesto expressivo que colocava no rosto quando falava assim.
— Ah, o senhor está me imitando, reclamou.
Nádia era de uma docilidade incrível. Via-a como uma filha amada. Ao refletir em mim tal pensamento, fui tocado por tamanha felicidade que me senti incapaz de sentir ódio. Sorri para ela. E o olhar que ela me retribuiu tocou tão fundo meu coração que quase deixei cair uma lágrima.

     Oh, não queiram os senhores imaginar o que aconteceu logo mais, à noite!...


II

Fechando a porta e virando-me para o interior do quarto, não estranhei a escuridão. Abri a janela, que, como tanto me disseram a boa Nádia e senhor Moreiras, dava para o rio Acarai.
Abri-a e vi as luzes dos postes acesas. Já era noite. Não me assustei com o avançado da hora.  Acostumara-me a sofrer esses lapsos de tempo. Às vezes as lacunas eram breves, uma hora, um minuto até, constantemente um segundo, porém só muito raramente se alargavam tanto. De certa forma isso faz parte do processo de ruminação ao qual me submeto: enquanto rumino, o lado de fora se me abstrai, dele perco o sentido.
    Para que tudo isso? Para quê? — pergunte-me, leitor.
Uma outra pergunta faço agora: serei mesmo eu, por vontade própria, que me submeto a essa digestão mental? A resposta é: não sei. Uma outra vez, quando dispuser de tempo, entregar-me-ei a esta análise. Mas, por ora, deixe-me lavar a alma (é um pensamento: sempre que sinto a alma suja, tomo demorados banhos; saio melhor de sob o chuveiro, a limpeza do corpo de fora reflete no de dentro) portanto, o que me faltava naquele momento era um banho. Ir-me-ia a ele e esquecer-me-ia do rio, de Nádia, de Vera e...
Segurando ambos os lados do meu pescoço com as mãos, enfiava-me Vera sua língua até a garganta.  Assim a senti, porém ela, depois, disse daquele modo não fora. Muito pelo contrário, apenas percorria com a sua língua o céu e toda a base de minha boca. Mais, enquanto o fazia, também ela, e não só eu, dava um pouco de si, pois espargia, como se fosse uma passaroca alimentando seu filhote ao bico, boa quantidade de saliva em minha boca, e, mais, sentira, durante bom tempo fiquei a sugá-la, como se a quisesse secar. Portanto não havia sido ela e sim eu quem me excedera naquele beijo. Bem quis ela fazer-me acreditar nisso. Mas, fosse como fosse, já era tarde, eu a tinha magoado, não só por jogá-la de encontro à prateleira do outro lado, na parede, também sim por ter-me mostrado espiritualmente grosso, o que ela não tolerava. Fosse violento por causas externas, porém com as causas do coração... ah, meu bom amigo, disse-me ela, com estas há de ser o homem e também a mulher delicados. Excessivamente delicados. E saiu batendo a porta, um gesto, digamos, extremamente grosso... no entanto perdoável, não só por ser conseqüência de um erro meu, mas sim por ser, de certa forma, uma grosseria alheia aos nossos sentimentos. Ficasse a situação por esse patamar, tudo ia bem. Mas, como agravante da grosseria, estávamos em casa de seus pais. E eles, pai e irmão de Vera, diferentes da porta que não tem ouvidos, pois quem os têm são as paredes, rápidos do quarto acudiram ao estatelar do corpo da filha na prateleira, e fizeram-se presentes na sala.
— Ora, mas tudo por causa de um beijo mal dado! Ou seria um beijo maldado? — pergunte-me.
Fique sem saber a resposta. E, se quiser, fique remoendo, remoendo, remoendo...
Que importância tem esse questionamento, se já estavam as feras com suas garras enfiadas no meu sofrido pescoço?
— Fale! Fale, homem mau! O que fez com minha filha? — disse o pai de um lado.
— Ah! Hum! Ah! Hum! Hummm! — urrou o irmão do outro, um adolescente: perdoe-lhe a irascibilidade. Mas o fato é que ambos cravavam suas unhas na minha jugular, o que me deixou sufocado.
    Fale! Vamos, fale, desgraçado — repetia o pai.
Bem gostaria de falar-lhes. Mas, como podia? Apertavam-me tanto o pescoço!
    Parem! Parem! — irrompeu Vera, gritando, na sala.
Imediatamente obedeceram. Largaram-me, recompuseram-se, sentaram-se no sofá e alargaram os olhos e os ouvidos, ansiosos por ver e ouvir o que tínhamos a dizer. Foi ela quem disse:
— Não briguem vocês por uma coisa tola! Senhor Centelhas não me fez nenhum mal, ao contrário, é ele um homem bom. Quer-me bem, é verdade, mas... descontrolou-se, foi isso, faltou-lhe o ar da delicadeza e...
— O ar da delicadeza?! — perguntou desconfiado o pai — Diga-me cá, filhinha, mas que raio de eufemismo é esse que nunca ouvi. A que diabo de grosseria ele suaviza?
— Ora, meu pai — começou ela, ganhando tempo — apenas quero dizer que... bem, faltar o ar da delicadeza é a mesma coisa que... pensando bem... é abrandar a intensidade de um beijo mal dado. Pronto, é isso.
Eu, jogado num canto, há tempo pedia:
    Água! Água, por favor — mas quem me ouvia?
— Água não há! Vá buscar em Minas! Minas não há! Ora, contenha-se! Então te sufoca um beijo e não água? — disse Vera, irritada.
— O quê? O que disse, minha flor? — perguntou curioso o pai, o irmão já distante, pensava em tal e tal coisa — Então quer dizer — continuou o pai — que se sufocou este traste com um beijo? Vou rir, ora se vou — E escancarou a boca para que nela se instaurasse um sorriso animal.
— Animal! Animal! Isto é o que és — disse gritando ao pai de minha noiva.
Para quê? Ai, malditas palavras foram aquelas! Todos na casa silenciaram de repente, o pai, minha gatinha de olhos verdes, e até o irmão, um grandessíssimo distraído, todos perderam a boca, só a porta da rua gemeu para que uma senhora gorda entrasse. Eis que porta fala!
— Acabei-me em compras — disse ela; não a porta, a mãe de Vera.
O encorpado da voz e a obesidade do corpo da mulher foram chupados. Não só eles, mas também as paredes, os móveis, o tempo e todo o espaço em redor. Realmente a porta rangeu e alguém entrou. Naquele momento estava eu à janela da pousada, no meu quarto, perdido a olhar o rio. Quanto tempo fiquei naquela abstração, remoendo uma cena vivida com Vera? Não sei. E, se não fosse o gemido da porta cortando esse elo, decerto a cena continuaria por mais horas e horas. Virei-me em direção ao limiar e ainda pude ouvir a moça dizendo: (a voz chegou-me misturada à da mãe de Vera, e eu ainda sob o efeito daquele momento).
— Trouxe-lhe nova refeição, senhor Centelhas — disse Nádia em pé, parada no vão da porta.
    Gorda! Gorda! Isto é o que és! — gritei-lhe, irado.
Assustou-se a mocinha, e com razão.
    Gorda, eu?!
Mais uma vez aqueles olhos... Podia agora vê-la melhor, em outro plano e... ora, constatei atônito: Nádia não passava de uma criança. Quantos anos? Doze, treze, se muito, quinze. Ao pé da escada não a vira pequena, talvez por ter-se portado como felina. Escondera-lhe o real tamanho a valentia. Mas dessa vez, ali em minha frente, plantada de pé, muito bonitinha e ereta dentro de um traje branco que talvez lhe tenha forçado a vestir senhor Moreiras, e portando-se como vítima de um mundo cruel, oh, senhor, como a quis tomá-la ao colo, beija-la tanto e pô-la a dormir! Velaria o seu sono como se eu fosse um deus, um pai protetor...
    Gorda, eu?!
— Oh, não! Não! Perdoe-me a estupidez! Encontrava-me perdido em... Ora, mas veja que minhas palavras foram mesmo muito estúpidas, és tão magrinha...
    Magrinha, eu?!
Logo percebi o quanto difícil é agradar as mulheres.
Furibunda, de um coice Nádia fechou a porta. E entrou no quarto.
— É inacreditável como as pessoas são cegas! — disse ela, enquanto caminhava até a mesinha de centro. Depositou a bandeja sobre esta, erigiu-se sobre si e muito ereta falou: —  Extremistas! Assim são os adolescentes. Extremistas! — “Ora, meu Deus” pensei, “com quem será que se rebela meu pobre bebê? Decerto um namorado, e, não tendo com quem se abrir, vem, assim, introduzindo dessa forma o assunto, e comigo! Obrigado, Senhor, por esta graça. Eis a oportunidade de orienta-la, não com a extremada firmeza dos pais, mas assim assim uma meio moderada conversa de amigo, porém nunca frouxa demais. Eis que vou orientá-la”.
— Filhinha... — nem bem abri o bico, rápida interpelou-me:
— É inadmissível! Inadmissível! — falava com os lábios cerrados e os olhos muito acesos, fula de raiva — Quem pensa que és, para assim, logo de chofre, emitir opinião destorcida a meu respeito?
Só aí então foi que liguei o pronome ao verbo e vi que se referia a mim.
Encarava-me direto nos olhos. Sempre fui tímido, baixei os meus. Para quê? Para quê? Tinha de ser firme e encara-la até obriga-la a baixar os seus, dobrá-la, remoê-la, remoê-la... depois.
— Há, há, há, há, há!
Ria-se de mim, a cretina. Com certeza adivinhou minha fraqueza em tempo de criança, quando, muito facilmente, qualquer garotinha fitando-me bem no fundo dos olhos me fazia baixar os meus. Naquele tempo era só uma brincadeira e, ainda assim, causava-me os maiores estragos.  Mas não daria a Nádia o gostinho da vitória, não cederia um dedo, nenhuma concessão.
Esta bravata interior eu erguia, e, enquanto a elevava além do chão, subi tanto em meus propósitos de vencê-la que, não tendo mais onde pôr os pés, inevitavelmente as pernas fraquejaram e — impossível não dobrá-las — junto com elas foram os olhos lamber o chão, e toda a cara, mas, se havia ainda um pouco de hombridade em mim — decerto que há em todos os fracotes — socorreu-me ela. Não importa o brilho que ela tenha, umas socorrem seus donos com altivez, com elegância e classe; outras... um ratinho, mesmo um ratinho traz dentro de si um algo de nobre... saber recuar, disfarçar, distrair e meter a hombridade pelo buraco, eis aí a mínima condição humana.   Por isso pensei em me desculpar, dizer-lhe que era mesmo muito bem feitinha de corpo e mesmo muito difícil saber se magra ou gorda.  Porém não o fiz, o que me pareceu ainda pior.
            Nádia, cansada de me tripudiar, sentou-se em frente à mesinha de centro e começou a servir o café.
            Bem, ponderei, já é alguma coisa colocar o meu café, de certa forma dobra-se, está sendo servil.
Esperei que terminasse de servir e se retirasse, mas, quem disse! Com a mais descarada elegância do mundo pôs-se a emitir risinhos oculares que, em tudo, já evidenciava o deboche e a superioridade.
Ato contínuo, levou a xícara aos lábios e ficou a me olhar por sob os olhos, como se espreitasse uma reação de minha parte, como se previsse, a cínica, que a qualquer momento eu chegaria ao meu limite e explodiria. Hi, hi, hi, hi, hi, ri-me por dentro, este gostinho eu não lhe daria. De fato, não dei. O que fiz? Dei-lhe as costas.
Feito um rato chiei e enfiei a cara no buraco. Nenhuma outra foi a resposta. Depois remastiguei esse meu comportamento. Havia, não sei de que modo, uma certa ligação entre o roedor e o ruminante, como se fossem eles parentes bem próximos, como se o ato de ruminar e o de roer fossem um só.
Da janela olhei para fora. O ar fresco e na rua poucas pessoas. A ponte que se encompridava indo de encontro ao rio, levava em suas bordas duas fileiras de postes com lâmpadas que clareavam muito mal. O reflexo da luz bronzeada brilhava na água escura do Acaraí. Na extremidade da ponte um homem tomava ar, ou talvez só pensasse, gastasse tempo, poluísse a natureza... virou-se. Ora, veja, senhor Moreiras! Então se dava ele a esses passatempos... Seria também um ruminante? Logo vi que não, pois bastou me ver à janela e bateu em retirada. Um verdadeiro ruminante não teria essa reação. Um homem, e ainda mais à noite, sim, pois a noite pertence mais aos sentidos do que à razão, a noite com suas penumbras, seus semitons, todo a sua característica barroca, à noite o homem viaja, não para fora, mas para dentro de si, ainda mais se a noite for fresca e se sob ela houver uma ponte e um rio para nele se desaguar... Um verdadeiro ruminante não veria um outro à janela, nem ninguém, nem nada. Apenas desaguaria, desaguaria...
Eu sei essas coisas porque sou um homem muito inteligente; outros nem se dão conta de que são ruminantes, (estes se assemelham ao boi e ao matadouro tanto se lhes faz ir ou não).
— Água! Água, por favor!
— Água não há! Vá buscar em Minas! Minas não há! Ora, contenha-se! Então te sufoca um beijo e não água? — disse Vera, irritada.
Fiquei muito tempo plantado à janela, remastigava um episódio de minha vida com Vera. Depois, após ouvir o apito de um barco na ponte, pisquei rápido e, hi, hi, o rato ressurgiu, lembrando-me de que Nádia tomava o meu café, abancada no meu sofá, em minha sala.
De uma virada repentina e violenta, mandei o rato aos infernos. Ah, como é bom sentir-se valente! Senhor de si! Dono da situação! Mesmo que seja por um segundo...
Bem se vê o tempo em que estive fora! Voltei à janela e constatei que na rua não se via um pé de gente. A ponte deserta. Silenciosa. Ao longe, o som de buzina de carro. E, de novo, o silêncio. Dentro do quarto, o ressonar de Nádia.

segunda-feira, 14 de maio de 2012


Não é sempre, mas às vezes levo sustos enormes. É como um rio que a gente navega, navega, mergulha nele, afoga-se nele, e nem se dá conta de que o rio é o curso de sua vida. Tenho essa impressão quando concluo algum texto, às vezes. O engraçado é que há um disfarce medonho, um terreno e tempo distantes, personagens nunca antes vistas ou sabidas, como se tudo isso pertencesse ao alheio, ao que não nos diz respeito. E o susto que tomo é este: saber que nada do que escrevo é alheio, o susto é saber que tudo o que escrevo diz respeito a mim, mesmo que distante, estranho, escuro, inconcebível, metamorfoseado em dragão ou em sereia, eu sou a fonte, eu sou o rio que deságua, para o abismo, para o fim, para o nada.

Capítulo de algo maior, ou menor. Sei lá.

***
A luz do sol apareceu vermelha, rasgando o céu, lá por trás da península de Maraú. A ilha da Gerumana era uma sombra se elevando sobre o mar do canal. O ar ainda frio. Logo o sol desceria queimando tudo.
Teófilo ouviu um estrondo, vindo lá das bandas da Ponta de Caieira. Imaginou que fosse Raimundo Reis matando os peixes.
“Um desperdício. Uma maldade com a natureza. O desgraçado ainda vai se dar mal. O certo é pescar de linha, de rede de arrasto; o certo é usar a malha certa na rede, para não pegar os peixes pequeninos, que não servem para comer. É certo usar bomba? Milhares de ovas perdidas. O homem é burro. Raimundo Reis também é meu amigo mas é burro. Que mal fiz a Deus para ter um amigo burro?
Acendeu outro cigarro e tomou rumo contrário ao som da explosão. Não queria ouvir os estrondos. Foi para longe, para um lugar onde pudesse apoitar sua canoa, preparar sua isca e esperar que o peixe graúdo viesse morder o seu anzol.
“É diferente. É muito diferente. Pesca-se o necessário; não há matança desordenada. Diabo! O fim não justifica o meio.”
Imaginou Raimundo Reis catando as tainhas da superfície. O samburá do infeliz devia estar entornando peixe, mas não lhe era suficiente, o pescador sabia que lá no fundo estavam as tainhas gordas, por isso mergulharia e iria buscá-las.
O sol se escondeu atrás de grossas nuvens, lá onde a península descamba para o oceano. Nuvens negras, volumosas. O mar do Canal escureceu e a paisagem mudou. Desenhou-se um quadro de chuva. Teófilo percebeu que tudo ficou quieto. Julgou que fosse a explosão da bomba a causa de tanto silêncio. Deve ter assustado as garças e os savacus. Um bando de periquitos e todo o estardalhaço que fizeram, quando cruzaram o Canal, se ouvia agora longe, quase como uma ilusão.
Teófilo apurou o ouvido, na tentativa de ouvir a voz de algum outro pescador. Por aquelas bandas era comum um pedaço de voz vir bater nos ouvidos. O vento trazia e levava, num bater de asas.
“O tempo virou! Nenhum som. Nada. Ora, o mar está para peixe.”
Lançou a linha ao mar e esperou.
“Que mais se pode fazer nessa vida?”
***

Fragmento de "uma coisa" que estou escrevendo; tomara que vingue.
***

Eugênia, depois que percebeu que o marido havia saído, levantou-se, pois não estava com sono. Pegou o candeeiro pendurado em uma viga da casa e o colocou sobre a mesa, assim poderia ler o Almanaque Capivarol, exemplar que lhe dera seu João Celi, quando ela fora à vila comprar remédio para cólica. Era a única coisa que tinha para ler naquela casa. Havia uns casos e piadas engraçados na revista. Já os lera todos, mesmo assim sentia certo prazer em voltar à leitura, como se fosse a primeira vez. Sabia tudo de cor, mas havia um engenho na leitora que fazia com que a cada nova leitura brotasse da história algo novo. Ou como se a pessoa que estava lendo já fosse outra. Assim Eugênia se pôs a folhear a revistinha. E parou num caso conhecido. Ao terminar a leitura, estava emocionada, como se todos os problemas do seu mundo real tivessem deixado de existir. Naquele momento, só ela e a leitura. Desviou os olhos do almanaque e olhou a parede à sua frente. Agora uma outra história, também já vivida e repetida por Eugênia, saltou dos seus olhos e foi se desenrolar na parede. Ela era a espectadora. A luz amarela e trêmula do candeeiro projetando e dando movimento às imagens na parede. Era uma história. E era uma história triste. A história de um amor proibido. O filme parou de repente. Eugênia apagou o candeeiro com um sopro forte e as imagens evadiram-se. O cenário do mundo escureceu. Bobinha! A história não para nunca. Ela é filha do tempo. Ela continua, mesmo no silêncio, mesmo na escuridão...
***

domingo, 1 de abril de 2012

Anjinho


            A igreja agora é bonita. Limpa, por fora. Dá gosto olhá-la de longe, destacando-se na Praça da Matriz. De perto, então, apura-se o olfato e ainda se sente o cheiro da tinta fresca entrando pelas narinas e pelos olhos, enebriando, deixando o povo tonto. Toda renovada, ela que é tão antiga. Suas torres, braços incansáveis, erguem-se aos céus, clamando a Deus os inúmeros pedidos. Maria Dasdolores de Vulpian, rogou a Nossa Senhora que curasse seu filho Anjinho do puxamento que o maltratava desde que nasceu. Até mesmo ela, que nunca adentrara aquele sagrado santuário, recebeu uma dose do santo remédio, o restante da cura viria por merecimento. O menino, rosado nas aparências, pareceu-lhe sarado. Acendeu duas velas pequenas e ficaram acertadas, ela e a santa. O asmático, alheio ao acerto de comadres, continuou fazendo suas necessidades no terreno da igreja, lá nos fundos, ao lado da sacristia, onde dormia, num esquife, o Nosso Senhor Morto. Arriava o calção, agachava-se e deixava no terreno a sua obra sagrada. E isso era sempre de tardinha, antes de seu João Grande se dirigir à usina e botar o gerador para funcionar. A figura enorme do homem, figura que faz jus à alcunha, aterrorizava o menino. Por isso, sempre que Anjinho suspeitava a aparição de seu João Grande, arrancava folhinha de mato e limpava-se às carreiras. E às carreiras saía do beco do motor, gritando:
            - A vara! A vara!
            Nesse momento, ele já não tinha mais medo de seu João Grande. Agora, o que sentia, era emoção. No canto da sala de sua casa, lá estava a vara comprida e flexível de araticum. Pegava-a com mãos nervosas e saía correndo. Postava-se no oitão da igreja e, com a vara à frente, aguardava. Logo chegavam os outros meninos, uns com varas, outros com pedras.
            Vulpian, que então fumava encostado à porta de seu bar, disse:
            - Olhe, Dasdolores, lá estão os malvados.
            Mal Vulpian acabou de falar e de dentro do bar, que também era sua casa, saiu seu filho Anjinho com uma vara comprida.
            - Epa! Epa! Mocinho! Onde pensa que vai?
            - O menino parou, manso. A feição, de anjo remelento. A respiração e os olhos, fiapos de nuvem. Os cabelos, louros, escorridos. As faces, sujas. E as mãos, determinadas, segurando a vara. Continuou parado. Não era o menino que estava parado. Tudo estava parado fazia tempo naquele lugar. Desde a fundação da Aldeia, que chamaram de Aldeia da Purificação, com a chegada dos jesuítas da Companhia de Jesus, no ano de 1654, com a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo. Os santos encarnados vieram, plantaram coisas e se foram. Deixaram em seu lugar imagens de barro, sacralíssimas. Deixaram a construção imponente, plantada no meio da Praça da Matriz. Em redor, casinhas penitentes, ajoelhadas, diante da grande Casa.
            - Oxe! O que foi isso?
            Uma imagem nos passou de repente diante dos olhos. Chegou-nos como se fosse a lembrança adormecida e fresca do furúnculo que o menino acabou de espremer.
            - Pare de mexer no furunco, menino; vai magoar a ferida, gritou-lhe o pai. Olhe só para isso, Dasdolores, o carnegão de fora.
            Ora! Mas o menino nem percebeu que mexia na ferida. Olhou o dedo sujo de sangue pustulento e de outras imundícies e rápido limpou a sujeira no calção. Saiu correndo, gritando:
            - A vara! A vara!
            - Diabo de menino! resmungou o pai.
            - E não pode se cansar, Vulpian, disse a mãe. Mas é menino, e menino precisa de brincar. O coitadinho... Deus tenha piedade... Meu anjinho...
            Juntou-se a outros meninos, que aguardavam seu João Grande ligar o motor.  Essa expectativa só aumentava a emoção. As mãos envolviam as varas de araticum com força. As pedras sonhavam um destino certeiro. Jajá de tio Wilson disse:
            - Vou acertar o Diabo em cheio. Vamos seu João, liga logo esse bicho, gritava de longe da usina.
            Até Zezinho de finada Linda de Epitácio, que só andava doente e nem aguentava dar uma carreira, nessa hora arrotava:
            - Vou acertar dois de vez.
            Só Anjinho não dizia nada. Mas todos podiam ver nos seus olhos a bravura reluzir. O motivo vinha de longa data, funcionava como rito de passagem dos meninos, consagração a Deus e renúncia ao... Deus me livre, pois não digo esse nome. É que também eu fui menino de lá. Os pais nem reclamavam.
            - É bom que se mate esses bichos; filhos do Diabo – os homens crescidos tinham coragem de dizer.
            Não demorou muito e logo se ouviu o ronco da máquina. As luzes dos postes de madeira se acenderam. Mas ninguém viu a luz, nem ouviu a Ave Maria que começou a tocar no rádio, no bar de Olica. Nenhum dos meninos fez o sinal da cruz. Anjinho, preparado, disse:
            - As varas! Aí vêm eles!
            E logo a legião de diabinhos se atirou rua afora e ganhou o beco da igreja.  Formavam uma nuvem preta, assombrosa, davam pequenos gritinhos e batiam as asas desordenadas. Chegaram rápidos, num sobrevoo rente à cabeça dos meninos, e logo sumiram. As varas e pedras também mexeram-se rápidas.  Umas cortaram o ar ligeiro e nada encontraram; já outras, certeiras, atingiram o alvo em cheio.
            Cinco morcegos no chão. Uns parados; outros ainda se debatendo, emitindo  gritinhos estridentes.
            Anjinho chegou perto de um e disse:
            - Cara de rato. Rato, vira morcego! Rato vira morcego e foge tritritri avoando. Jajá, morcego se desvira em rato?
            Jajá, que tinha resposta para tudo, respondeu, enraivecido:
            - Ele vai virar é diabo morto!
            Levantou o pé e desceu-o com toda a força sobre a cabeça do bichinho. Depois ficou girando o pé, esfregando a cara do coitado no barro da rua.
            - É assim que eu me vingo, filho de Satanás!
            Anjinho achou o que Jajá fez muito errado. Deixou o morcego imprestável . Pois morcego morto não serve para nada. Por isso ele olhou rápido para os outros que estavam espalhados pelo chão. Viu um se arrastando, tentando fugir. Rápido, gritou:
            - Não mate, Jajá! Esse é meu.
            - Oxe, e vou lá matar! Já tive o meu; quero é ver se morcego se desvira em rato. É todo seu. Pronto, já vi que não desvira. Pode matar.
            - Vou matar depressa não, respondeu Anjinho, olhos fixos no bicho.
            - Ora! E vai matar como?
            O menino não respondeu. Mas tudo já estava preparado: o tronco da bananeira no fundo do quintal de sua casa, as brochas que arrancou de uma tábua velha, e agora o morcego, que era o que estava faltando.
            Jajá, não tendo mais o que fazer, provocou:
            - Se desvira em rato nada!
            Então Anjinho, que saiu com essa novidade, explicou:
            - Desvira, sim; ele, deve, estar, é, com, vergonha. Fiiuuu. Ou, então, ainda, é, novo; tem que, ser, morcego, velho... Fiiiuuu. Largata, não, vira, bor-bor-bor-bo-leta? E...
            - Mas borboleta não desvira em lagarta, desvira, miadinho de gato? E não é largata, é “lagarta”.
            E Jajá deu uma carreira rua abaixo, à procura de praticar maldade com outros bichos indefesos.
            Anjinho pegou o morcego, que ainda se debatia, e levou-o para sua casa.
            Entrou com o bicho meio escondido, para que seus pais não vissem. Sabia que iriam reclamar. Pais, quando grandes, reclamam de tudo. O menininho nem pode levar um bicho para casa. Tem que ser assim, escondido. Será que pais adultos pensam que  meninos são bestas? Tadinhos...
            O menino entrou foi na arte natural da sonsidão. No fundo do quintal colocou o bicho sobre uma folha grande de cacaueiro. Olhou o tronco da bananeira. Lisinho. Pegou as brochas, que deixara escondidas no porão de um de seus barquinhos de cortiça, e pronto.
            Foi difícil segurar a asa direita e a brocha ao mesmo tempo em que segurava a asa esquerda. Mas conseguiu enfiar a primeira brocha. A segunda foi mais fácil.
            - Pronto. Aí está você, pássaro do diabo, Anjinho praguejou.
            Ficou parado em frente ao morcego. De asas abertas, pregado no tronco da bananeira, o bichinho imóvel, a cabeça ainda firme, querendo reagir, como se pretendesse soltar-se do resto do corpo. Deu um gritinho de sofrimento. O menino se arrepiou. É que a escuridão descera, e o menino, tão entretido com o morcego, nem percebera. Mas a escuridão agora vem lhe dizer que mete medo. Que o quintal, ali pelos cantos, sob as folhas, e logo mais por todos os escuros, o ambiente agora é dela. Que ele deve entrar em casa, sair do quintal correndo, antes que ela o prenda nas suas asas negras.
            O menino olhou para trás, rápido, como se tivesse levado uma cutucada de alguém, ou de alguma coisa. Mas nada viu, ou viu apenas o grande vulto que crescia por todos os cantos, e em redor de si.
            Medroso, deu uma carreira e entrou em casa.
            Maria Dasdolores e Vulpian mais outros filhos, que não interessa nominar nem quantificar,  já estavam à mesa. Anjinho entrou correndo e foi se sentando no seu tamborete. A mãe foi até o fogão de lenha, pegou a chaleira que estava sobre a trempe e derramou o café na caneca do menino. Deu-lhe um bolachão e ele começou a comer. Depois que Anjinho terminou de tomar o café, ficou na mesa ouvindo a conversa dos pais. Mas não acompanhava nada do que eles diziam. Apenas algumas palavras febris lhe chegavam desmaiadas.
            “Puxamento. Coitadinho. Na venda de seu... Piorando. Xarope de... Caro. Come, meu filho, disse a mãe, pasando a mão na cabeça loura do filho. Vai ficar bom, disse o pai, agarrando-se no invisível.”
O pensamento de Anjinho estava mais voltado para o morcego pregado na bananeira. Pensou que talvez ele já tivesse morrido. Ou se desvirado em rato. Concluiu que, se ele tivesse se desvirado, já não estava mais lá. Se ao menos ele pudesse vê-lo. Mas o quintal tão escuro! Espiou pela janela, mas não viu nada. Até colocou o fifó na direção da touceira de bananeiras, viu um vulto atravessar o clarão do fifó e se embrenhar por trás das folhas, fechou a janela rápido e foi dormir.
            Logo toda a casa entraria em sono profundo. O dia começava bem cedinho, com o céu ainda escuro, mas enfeitado de estrelas. A mãe cuidava de tudo. Acendia o fogão para fazer o café. Acordava os meninos para irem à escola. Depois que os despachava, intercalava os afazeres domésticos com ajudar o marido no bar. Os meninos chegavam da escola, almoçavam e iam brincar, ou então tomavam banho no rio, ou judiavam os catendes, ou matavam murunhanha, ou não faziam nada, apenas paravam alerdados, espiando o tempo passar se arrastando, na rua. Os dias eram longos.
            A mãe acendeu a lamparina no quarto dos meninos. Deixou a chama bem baixinha, para economizar gás. Rezou o Pai Nosso com eles, deu um beijo em cada um e saiu.
            Logo todos dormiam. Menos Anjinho, que não conseguia desgrudar o pensamento do morcego pregado no tronco da bananeira. Os irmãos todos enrolados em cobertores franciscanos grossos e macios. O silêncio doía nos ouvidos. Um som ensurdecedor que vinha não se sabe de onde. Se ao menos ele pudesse dormir logo. Mas não, tem de ficar pensando no bicho pregado na cruz. Bicho pregado na cruz? Nessa hora o menino avistou o Nosso Senhor pregado na cruz. Ele bem à sua frente, na parede do quarto. A luz da lamparina sem alumiar bem. Luz confusa. Luz que mistura o claro com o escuro, numa dança enebriante. As horas entontecidas, deixando a noção do tempo lassa. É de deixar a vista maluca. Umas visões. O Nosso Senhor pregado na cruz  se mexendo. Talvez ele ainda esteja vivo, e sofrendo. Isso é maldade. O menino já arrependido, pede perdão a Nosso Senhor, pois não devia ter feito aquela ruindade.  Que animal é mamífero e voa? Ouve a professora perguntar, na escola. Ninguém soube responder. Então ela disse que galinha era animal ovíparo; e o cabrito, herbívoro. E o morcego? O morcego é o quê? ela perguntou. Anjinho se adiantou e respondeu:
            - Sanguífero, ele respondeu. Sanguífero! Sanguífero! ele grita bem alto agora, mas o som morre-lhe no peito asmático.
             A professora não achou graça. Disse que a resposta estava errada. Botou o menino de castigo. Agora ele já sabe que morcego é mamífero, e voa. Mas que castigo! Que mal ele fez para ficar pregado. Ele tem a cabeça pendida para o lado. Ele já deve estar mesmo morto. Mas se está se mexendo? Morto é morto. Morto não é vivo. Mesmo assim o que é morto dá medo. Ele é tão magro. É de hoje que Ele morreu... Esse era homem e virou anjo. E o anjo se desvirou em homem no terceiro dia. E o outro, vai se desvirar em quê? Quando?
            Veio a noite alta e o menino lá, acordado. Até fez força para dormir. Mas visões assustadoras afugentaram-lhe o sono. Começou a sentir medo. Ora, mas medo de quê? Só por que matou um bichinho maldito? Estaria ele com medo de ser castigado por esse Deus pregado na cruz? Ele nem está olhando. Mas o menino de vez em quando levanta um pouco a beira do cobertor e gruda os olhos no Jesus crucificado. Ele tem uma luz em seu redor. É a luz da lamparina que ilumina mal o quarto. Antes estivesse tudo escuro, assim não viria o olho de Deus, que tudo vê, mesmo sem estar olhando. Ou seria coisa da cabeça da criança? Crianças têm esses medos aprendidos, que apreendem-nas, prendem-nas na pior prisão, aquela que é construída dentro de cada um. Para onde quer que se vá, a prisão interior o acompanha, não há liberdade do lado de fora. Meus Deus, não há liberdade!
Disseram-lhe que Deus castiga menino mau. E ele agora é um menino muito mau. Quem mandou matar o morcego? E Jajá? Estaria ele acordado nesse momento, com medo de ser castigado por Deus? Ou será que ele dorme, sem culpa, sem nada? Jajá ao menos é corajo e não pensa essas coisas. Mas Anjinho, não. Anjinho nem deve ter tanto medo. O que ele tem mais nesse momento é culpa, remorso por ter matado o morceguinho, que também é uma criatura de Deus. Anjinho uma vez disse que o Diabo, até o Diabo, é uma criatura filho de Deus. Que tudo que existe no mundo é criação de Deus. Mas nunca soube dizer a ninguém quem criou Deus. Na aula de catecismo, o padre perguntava:
            - Quem é Deus?
            E Anjinho, mais os outros meninos, respondia:
            - Deus é o criador de todas as coisas.
            - De que é feito Deus?
            - Deus é feito do nada.
            Então pronto. Tudo estava explicado. Mas um dia Anjinho, relutante, perguntou ao padre se Deus era o pai do Diabo. O santo homem quase teve um troço. Arrancou o menino da cadeira puxando-lhe as orelhas, deu-lhe doze bolos e o colocou de castigo, de braços abertos por meia hora no pátio da escola, para que todos que passassem vissem o grande maldito que é esse menino. Desgraçado! Maldito! Não dá raiva mesmo? Ele ficou lá, meia hora e mais um pouquinho, feito um Cristo chorão. Bem feito!
            “Morre, desgraçado, morre! Pássaro negro, filho das trevas. E cravou-lhe mais outra brocha na asa esquerda.”
            - Engole o choro! Engole o choro! Disse a professora – ou terá sido o padre? -,   apontando-lhe o dedo na cara.
            Um pecador o Anjinho, um pecador. Não lembra o que ele fez com o morcego? Deixou-o crucificado no tronco da bananeira. Até parecia que tinha raiva do mundo. O que os outros meninos não entendiam era o que Anjinho dizia, rangendo os dentes, quando fazia uma maldade:
            - É assim que me vingo, filho do Cão!
            E foi pensando essas coisas que Anjinho, num momento de descuido, nem sentiu a noite soprar-lhe nas vistas e nas narinas um ventinho de sono.
            - Fiiiuuu! expirou profundo. E fechou os olhos.
A criança continuará sonhando mistérios...