SR.
CENTELHAS
I
O sono que tive não foi reparador, ao contrário,
levantei-me bem cedo, quando não havia sol e as luzes dos postes ainda se
encontravam acesas. Não pude compreender como dormira tanto, sim, pois desde às
sete horas do dia anterior que eu dormia. No entanto, tinha o corpo quebrado,
como se acabasse de chegar em casa de madrugada, voltando de uma festa, onde
minhas energias tivessem se exaurido. Apesar do cansaço e do mal-estar, seria
impossível deitar e dormir de novo. Portanto, decidido, fui ao banheiro e lavei
apenas o rosto. Fazia frio, condição pouco estimulante para banho. Escovei os
dentes e, enquanto fazia isso, olhava meu rosto num pequeno espelho quadrado de
bordas alaranjadas, pendurado na parede, logo acima da pia. Vi um rosto sem expressão,
marcado por olheiras escuras e um olhar apagado. “Deus do céu! assustei-me. Mas que aparência
horrível! Como pode alguém se apresentar com essa cara?” Fiquei uns dez minutos
olhando aquela expressão apática, até que meus olhos mergulharam-se uns nos
outros e, como se uma nuvem pairasse entre mim e o espelho, ofuscando tudo,
subitamente não vi mais meu rosto.
Ouvi batidas na porta. Agora podia ver mais uma vez
meu rosto no espelho, meu nariz, e meus olhos assombreados por profundas
olheiras.
Enquanto atravessava a sala, olhei o relógio e me
censurei por ainda não ter saído. E, mesmo sabendo ser toda minha a culpa por
ainda estar ali no quarto, recriminei quem batia à porta com tanta insistência,
cuja presença só me aborreceria ainda mais.
“Era só o que faltava! Sempre é assim. E agora não
pode ser diferente.”
Teria sido bom
recompor-me, enfiar-me me algum estado de espírito que mostrasse realmente quem
eu era. Mas nem pensei isso, tão rápido abri a porta e, quando vi, tinha em
minha frente um raio de moça.
Com uma bandeja apoiada na mão esquerda e a direita
erguida ainda em posição de bater, a moça não pôde controlar o impulso do murro
que já dava na porta e, desajeitada, teve o corpo lançado à frente,
esbarrando-o no meu. O murro passou-me zunindo na orelha esquerda. A bandeja,
suspensa por uma reação automática dos músculos do braço, foi lançada para
trás, o que provocou certo estardalhaço ao cair no chão.
Parados. Ficamos assim, assustados, um olhando a cara
do outro.
“Que lindos e grandes olhos castanhos! Que boca! Que
testa! E os cabelos! Ah, nada disso, testa pequena e bem feita; olhos realmente
castanhos, mas não grandes, profundos, cansados, porém com intenso brilho e
força, sob eles enormes olheiras enegrecidas, as quais contrastavam com a pele
alva. Faltou o quê? Ah, a boca, não era carnuda, nem tampouco fina, regular,
diria, não obstante rosada, de lábios firmes e, permita-me um deleite:
frutinhas frescas. Os cabelos? Não sei, desalinhados...; nariz graciosamente
arrebitado e, a respiração... bufos de égua em trote, bafejos expelidos de
vulcão: um gozo...
E fala! (Que pena! Afastou-se um pouco de mim. percebe
como eu estava um cretino?) vamos aos cumprimentos.
— Bom dia, senhor, vim trazer o café. Nádia. Meu nome
é Nádia – e estendeu-me a pequena mão.
– Centelhas – apertei a sua com firmeza.
– Ai – gemeu, franzindo o cenho e o nariz, apertando
os olhos e elevando um pouco o lábios superior.
Uma rosa vermelha,
com suas múltiplas reentrâncias, ensaiando,
no sofrer do nascimento,
o desabrochar.
(Agora era o lado poeta). Dois dentes destacavam-se
bem no meio de outros que se seguiam perfilados.
“Que boca! Que fome de beijá-la!”
Contive-me, aspirando fundo.
Antes de falar outra coisa, limitei-me a olhar as
horas.
— Queira me desculpar, senhor, devia ter vindo mais
cedo, mas minha mãe, ela sofre de asma, passou muito mal essa noite, e a
farmácia não abre antes das oito, especialmente nos dias de hoje abre ainda
mais tarde, como se não fosse possível a alguém ficar acometido por algum mal
justamente por hoje ser o dia que é. Tive que esperar abrir, comprar o remédio
e voltar correndo em casa e medicar minha mãe, só aí então pude vir ao hotel e
preparar o café dos hóspedes.
— Você já serviu os outros hóspedes? perguntei-lhe,
muito sério.
— Oh, não, senhor, vim trazer primeiro o seu café. O
senhor é novo por aqui e nem me conhece, não sabe que tenho uma mãe doente. Os
outros hóspedes são todos conhecidos, eles vão entender se me atrasar.
Acontece, às vezes, de eu nem precisar me explicar ou pedir desculpa pelo
atraso, eles, muito cônscios que estão do estado de minha pobre mãezinha,
simplesmente sorriem muito docilmente, como se me confortassem por ter uma vida
difícil. Nessas horas me sinto feliz.
A moça me deixou desarmado. Usou um argumento estranho
para me deslocar. “Diabos! Eu só queria recriminá-la, como faz um verdadeiro
chefe.” Então, muito ligeiro e docilmente, perguntei-lhe se podia esperar um
pouco, enquanto eu via uma coisa lá dentro. Na pressa com que tomei a decisão,
bati a porta na sua cara e, rápido, corri até ao banheiro e parei em frente ao
espelho. Tentei lembrar uma cara que fiz um dia, quando eu nem notei que Vera,
minha ex-namorada, me olhava. Só depois que eu a vi, foi que ela disse:
— Você estava
com uma cara tão boa.
— Boa como? perguntei-lhe.
— Ah! Você parecia estar livre dos problemas do mundo.
Depois que Vera me disse isso, assim que pude corri ao
espelho e tentei decorar aquela cara. Julguei que fosse uma cara simpática.
Mas, dias depois, como eu insistisse em usá-la continuamente, a cara virou
máscara, uma caricatura de mim. E, o efeito desastroso de usar uma máscara foi,
um dia, Vera vir muito dolorosamente me dizer das suas dores de cólica e eu,
inocente, mostrar-lhe uma cara simpática.
— Você parece
um bobo com essa cara, disse ela na sua dor.
A partir daí fiquei incerto se devia ou não usar
aquela cara simpática. E não foi só isso, de certa forma a máscara grudou na
minha memória, e de vez em quando ela vinha, insistente, querendo cobrir minha
cara natural, que é a triste. Passei a ter outra personalidade, uma intrusa,
uma indesejável.
E agora, ali no quarto do hotel, tentava lembrar com a
máxima fidelidade aquela cara simpática, mesmo com a forte suspeita de que, tão
logo eu a usasse, sobreviria a esse ato um grande e avassalador mal-estar.
Peguei-a e vesti-a. Voltei correndo à sala e abri a porta. A moça não estava
mais lá.
Aproximei-me da amurada do corredor e ouvi uma voz de
homem gritando com alguém, lá embaixo. Desci para ver o que estava acontecendo.
— É mesmo impossível se tolerar coisas desse tipo,
gritava senhor Moreiras, o proprietário do hotel, com a moça do café. E
continuou: não se pode dar um dedo, a mão, e logo nos tomam o braço, o corpo,
tudo, tudo; confundem tudo, liberdade com permissividade, cordialidade com
amizade. E agora, e agora, mocinha, é capaz de ver a situação real? Olhe para
mim. O que vê? Um liberal? Um amigo? Um cordial? Vamos, diga, o que vê? Ah, não
diz nada! Pois bem, quem cala consente. E é justamente aí que está a burrice,
poderia responder: “não, senhor, a melhor resposta é aquela que não se dá.” Mas
fica calada, sem argumento, nem ao menos pôde me responder: “não, senhor, a
melhor resposta é aquela que não se dá,” Hum.
— Mas foi
justamente o que fiz, senhor? disse a mocinha, muito recolhida em si.
— Quê?! Mas como ousa desafiar-me? Ah! logo vi,
pertence àqueles tipos dissimulados! Espera que afrouxemos o laço e nos dá o
bote.
Aproximei-me dos dois. Senhor Moreiras sorriu. A moça
do café procurou recompor-se rápido e também sorriu. Fiquei tão envolvido com
os gritos de senhor Moreiras que esqueci a máscara simpática. Portava agora tão
somente a cara da alma.
– Vê, senhor... senhor..., dirigia-se ele a mim.
— Centelhas.
— Veja bem, senhor Centelhas, bonito nome, esta é
Nádia, a moça do café. Repare bem, repare bem, se não o acordamos mais cedo é
porque hoje é domingo; dorme-se até mais tarde aos domingos. O senhor dormiu
bem? Ah, vê-se que dormiu, olhe só que cara esperta! Um passeio pela baía vai
lhe fazer muito bem. Os manguezais são lindos, dizem, eu não acho, mas já que
dizem, são realmente muito lindos. Tenho um barco a motor, eu mesmo posso
levá-lo, seria um prazer. O senhor tem fome? Quer provar um pedaço de
requeijão? Vou pegar.
O homem se apressou em ir pegar o requeijão.
A sós com Nádia, perguntei-lhe se aquele dia era
realmente domingo. Ela respondeu:
— Oh, sim, hoje é realmente domingo. Poucos
estabelecimentos estão abertos. Por isso esse silêncio. Não há o que se fazer
domingo neste lugar. O senhor gostaria de passear pela baía?
— Oh, não, respondi, imitando-a na fala e no gesto
expressivo que colocava no rosto quando falava assim.
— Ah, o senhor está me imitando, reclamou.
Nádia era de uma docilidade incrível. Via-a como uma
filha amada. Ao refletir em mim tal pensamento, fui tocado por tamanha
felicidade que me senti incapaz de sentir ódio. Sorri para ela. E o olhar que
ela me retribuiu tocou tão fundo meu coração que quase deixei cair uma lágrima.
Oh, não
queiram os senhores imaginar o que aconteceu logo mais, à noite!...
II
Fechando a porta e virando-me para o interior do
quarto, não estranhei a escuridão. Abri a janela, que, como tanto me disseram a
boa Nádia e senhor Moreiras, dava para o rio Acarai.
Abri-a e vi as luzes dos postes acesas. Já era noite.
Não me assustei com o avançado da hora.
Acostumara-me a sofrer esses lapsos de tempo. Às vezes as lacunas eram
breves, uma hora, um minuto até, constantemente um segundo, porém só muito
raramente se alargavam tanto. De certa forma isso faz parte do processo de
ruminação ao qual me submeto: enquanto rumino, o lado de fora se me abstrai,
dele perco o sentido.
—
Para que tudo
isso? Para quê? — pergunte-me, leitor.
Uma outra pergunta faço agora: serei mesmo eu, por
vontade própria, que me submeto a essa digestão mental? A resposta é: não sei.
Uma outra vez, quando dispuser de tempo, entregar-me-ei a esta análise. Mas,
por ora, deixe-me lavar a alma (é um pensamento: sempre que sinto a alma suja,
tomo demorados banhos; saio melhor de sob o chuveiro, a limpeza do corpo de fora
reflete no de dentro) portanto, o que me faltava naquele momento era um banho.
Ir-me-ia a ele e esquecer-me-ia do rio, de Nádia, de Vera e...
Segurando ambos os lados do meu pescoço com as mãos,
enfiava-me Vera sua língua até a garganta.
Assim a senti, porém ela, depois, disse daquele modo não fora. Muito
pelo contrário, apenas percorria com a sua língua o céu e toda a base de minha
boca. Mais, enquanto o fazia, também ela, e não só eu, dava um pouco de si,
pois espargia, como se fosse uma passaroca alimentando seu filhote ao bico, boa
quantidade de saliva em minha boca, e, mais, sentira, durante bom tempo fiquei
a sugá-la, como se a quisesse secar. Portanto não havia sido ela e sim eu quem
me excedera naquele beijo. Bem quis ela fazer-me acreditar nisso. Mas, fosse
como fosse, já era tarde, eu a tinha magoado, não só por jogá-la de encontro à
prateleira do outro lado, na parede, também sim por ter-me mostrado
espiritualmente grosso, o que ela não tolerava. Fosse violento por causas
externas, porém com as causas do coração... ah,
meu bom amigo, disse-me ela, com
estas há de ser o homem e também a mulher delicados. Excessivamente delicados. E
saiu batendo a porta, um gesto, digamos, extremamente grosso... no entanto
perdoável, não só por ser conseqüência de um erro meu, mas sim por ser, de
certa forma, uma grosseria alheia aos nossos sentimentos. Ficasse a situação
por esse patamar, tudo ia bem. Mas, como agravante da grosseria, estávamos em
casa de seus pais. E eles, pai e irmão de Vera, diferentes da porta que não
tem ouvidos, pois quem os têm são as paredes, rápidos do quarto acudiram ao
estatelar do corpo da filha na prateleira, e fizeram-se presentes na sala.
— Ora, mas tudo por causa de um beijo mal dado! Ou
seria um beijo maldado? — pergunte-me.
Fique sem saber a resposta. E, se quiser, fique
remoendo, remoendo, remoendo...
Que importância tem esse questionamento, se já estavam
as feras com suas garras enfiadas no meu sofrido pescoço?
— Fale! Fale, homem mau! O que fez com minha filha? —
disse o pai de um lado.
— Ah! Hum! Ah! Hum! Hummm! — urrou o irmão do outro,
um adolescente: perdoe-lhe a irascibilidade. Mas o fato é que ambos cravavam
suas unhas na minha jugular, o que me deixou sufocado.
—
Fale! Vamos,
fale, desgraçado — repetia o pai.
Bem gostaria de falar-lhes. Mas, como podia?
Apertavam-me tanto o pescoço!
—
Parem! Parem! —
irrompeu Vera, gritando, na sala.
Imediatamente obedeceram. Largaram-me,
recompuseram-se, sentaram-se no sofá e alargaram os olhos e os ouvidos,
ansiosos por ver e ouvir o que tínhamos a dizer. Foi ela quem disse:
— Não briguem vocês por uma coisa tola! Senhor
Centelhas não me fez nenhum mal, ao contrário, é ele um homem bom. Quer-me bem,
é verdade, mas... descontrolou-se, foi isso, faltou-lhe o ar da delicadeza e...
— O ar da delicadeza?! — perguntou desconfiado o pai —
Diga-me cá, filhinha, mas que raio de eufemismo é esse que nunca ouvi. A que
diabo de grosseria ele suaviza?
— Ora, meu pai — começou ela, ganhando tempo — apenas
quero dizer que... bem, faltar o ar da delicadeza é a mesma coisa que...
pensando bem... é abrandar a intensidade de um beijo mal dado. Pronto, é isso.
Eu, jogado num canto, há tempo pedia:
—
Água! Água, por
favor — mas quem me ouvia?
— Água não há! Vá buscar em Minas! Minas não há! Ora,
contenha-se! Então te sufoca um beijo e não água? — disse Vera, irritada.
— O quê? O que disse, minha flor? — perguntou curioso
o pai, o irmão já distante, pensava em tal e tal coisa — Então quer dizer —
continuou o pai — que se sufocou este traste com um beijo? Vou rir, ora se vou
— E escancarou a boca para que nela se instaurasse um sorriso animal.
— Animal! Animal! Isto é o que és — disse gritando ao
pai de minha noiva.
Para quê? Ai, malditas palavras foram aquelas! Todos
na casa silenciaram de repente, o pai, minha gatinha de olhos verdes, e até o
irmão, um grandessíssimo distraído, todos perderam a boca, só a porta da rua
gemeu para que uma senhora gorda entrasse. Eis que porta fala!
— Acabei-me em compras — disse ela; não a porta, a mãe
de Vera.
O encorpado da voz e a obesidade do corpo da mulher
foram chupados. Não só eles, mas também as paredes, os móveis, o tempo e todo o
espaço em redor. Realmente a porta rangeu e alguém entrou. Naquele momento
estava eu à janela da pousada, no meu quarto, perdido a olhar o rio. Quanto
tempo fiquei naquela abstração, remoendo uma cena vivida com Vera? Não sei. E,
se não fosse o gemido da porta cortando esse elo, decerto a cena continuaria
por mais horas e horas. Virei-me em direção ao limiar e ainda pude ouvir a moça
dizendo: (a voz chegou-me misturada à da mãe de Vera, e eu ainda sob o efeito
daquele momento).
— Trouxe-lhe nova refeição, senhor Centelhas — disse
Nádia em pé, parada no vão da porta.
—
Gorda! Gorda!
Isto é o que és! — gritei-lhe, irado.
Assustou-se a mocinha, e com razão.
—
Gorda, eu?!
Mais uma vez aqueles olhos... Podia agora vê-la
melhor, em outro plano e... ora, constatei atônito: Nádia não passava de uma
criança. Quantos anos? Doze, treze, se muito, quinze. Ao pé da escada não a
vira pequena, talvez por ter-se portado como felina. Escondera-lhe o real
tamanho a valentia. Mas dessa vez, ali em minha frente, plantada de pé, muito
bonitinha e ereta dentro de um traje branco que talvez lhe tenha forçado a
vestir senhor Moreiras, e portando-se como vítima de um mundo cruel, oh,
senhor, como a quis tomá-la ao colo, beija-la tanto e pô-la a dormir! Velaria o
seu sono como se eu fosse um deus, um pai protetor...
—
Gorda, eu?!
— Oh, não! Não! Perdoe-me a estupidez! Encontrava-me perdido em... Ora, mas veja que minhas
palavras foram mesmo muito estúpidas, és tão magrinha...
—
Magrinha, eu?!
Logo percebi o quanto difícil é agradar as mulheres.
Furibunda, de um coice Nádia fechou a porta. E entrou
no quarto.
— É inacreditável como as pessoas são cegas! — disse
ela, enquanto caminhava até a mesinha de centro. Depositou a bandeja sobre
esta, erigiu-se sobre si e muito ereta falou: —
Extremistas! Assim são os adolescentes. Extremistas! — “Ora, meu Deus”
pensei, “com quem será que se rebela meu pobre bebê? Decerto um namorado, e,
não tendo com quem se abrir, vem, assim, introduzindo dessa forma o assunto, e
comigo! Obrigado, Senhor, por esta graça. Eis a oportunidade de orienta-la, não
com a extremada firmeza dos pais, mas assim assim uma meio moderada conversa de
amigo, porém nunca frouxa demais. Eis que vou orientá-la”.
— Filhinha... — nem bem abri o bico, rápida
interpelou-me:
— É inadmissível! Inadmissível! — falava com os lábios
cerrados e os olhos muito acesos, fula de raiva — Quem pensa que és, para
assim, logo de chofre, emitir opinião destorcida a meu respeito?
Só aí então foi que liguei o pronome ao verbo e vi que
se referia a mim.
Encarava-me direto nos olhos. Sempre fui tímido,
baixei os meus. Para quê? Para quê? Tinha de ser firme e encara-la até
obriga-la a baixar os seus, dobrá-la, remoê-la, remoê-la... depois.
— Há, há, há, há, há!
Ria-se de mim, a cretina. Com certeza adivinhou minha
fraqueza em tempo de criança, quando, muito facilmente, qualquer garotinha
fitando-me bem no fundo dos olhos me fazia baixar os meus. Naquele tempo era só
uma brincadeira e, ainda assim, causava-me os maiores estragos. Mas não daria a Nádia o gostinho da vitória,
não cederia um dedo, nenhuma concessão.
Esta bravata interior eu erguia, e, enquanto a elevava
além do chão, subi tanto em meus propósitos de vencê-la que, não tendo mais
onde pôr os pés, inevitavelmente as pernas fraquejaram e — impossível não
dobrá-las — junto com elas foram os olhos lamber o chão, e toda a cara, mas, se
havia ainda um pouco de hombridade em mim — decerto que há em todos os fracotes
— socorreu-me ela. Não importa o brilho que ela tenha, umas socorrem seus donos
com altivez, com elegância e classe; outras... um ratinho, mesmo um ratinho
traz dentro de si um algo de nobre... saber recuar, disfarçar, distrair e meter
a hombridade pelo buraco, eis aí a mínima condição humana. Por isso pensei em me desculpar, dizer-lhe
que era mesmo muito bem feitinha de corpo e mesmo muito difícil saber se magra
ou gorda. Porém não o fiz, o que me
pareceu ainda pior.
Nádia, cansada de me tripudiar,
sentou-se em frente à mesinha de centro e começou a servir o café.
Bem, ponderei, já é alguma coisa
colocar o meu café, de certa forma dobra-se, está sendo servil.
Esperei que terminasse de servir e se retirasse, mas,
quem disse! Com a mais descarada elegância do mundo pôs-se a emitir risinhos
oculares que, em tudo, já evidenciava o deboche e a superioridade.
Ato contínuo, levou a xícara aos lábios e ficou a me
olhar por sob os olhos, como se espreitasse uma reação de minha parte, como se
previsse, a cínica, que a qualquer momento eu chegaria ao meu limite e
explodiria. Hi, hi, hi, hi, hi, ri-me por dentro, este gostinho eu não lhe
daria. De fato, não dei. O que fiz? Dei-lhe as costas.
Feito um rato chiei e enfiei a cara no buraco. Nenhuma
outra foi a resposta. Depois remastiguei esse meu comportamento. Havia, não sei
de que modo, uma certa ligação entre o roedor e o ruminante, como se fossem
eles parentes bem próximos, como se o ato de ruminar e o de roer fossem um só.
Da janela olhei para fora. O ar fresco e na rua poucas
pessoas. A ponte que se encompridava indo de encontro ao rio, levava em suas
bordas duas fileiras de postes com lâmpadas que clareavam muito mal. O reflexo
da luz bronzeada brilhava na água escura do Acaraí. Na extremidade da ponte um
homem tomava ar, ou talvez só pensasse, gastasse tempo, poluísse a natureza...
virou-se. Ora, veja, senhor Moreiras! Então se dava ele a esses passatempos...
Seria também um ruminante? Logo vi que não, pois bastou me ver à janela e bateu
em retirada. Um
verdadeiro ruminante não teria essa reação. Um homem, e ainda mais à noite,
sim, pois a noite pertence mais aos sentidos do que à razão, a noite com suas
penumbras, seus semitons, todo a sua característica barroca, à noite o homem
viaja, não para fora, mas para dentro de si, ainda mais se a noite for fresca e
se sob ela houver uma ponte e um rio para nele se desaguar... Um verdadeiro
ruminante não veria um outro à janela, nem ninguém, nem nada. Apenas
desaguaria, desaguaria...
Eu sei essas coisas porque sou um homem muito
inteligente; outros nem se dão conta de que são ruminantes, (estes se
assemelham ao boi e ao matadouro tanto se lhes faz ir ou não).
— Água! Água, por favor!
— Água não há! Vá buscar em Minas! Minas não há! Ora,
contenha-se! Então te sufoca um beijo e não água? — disse Vera, irritada.
Fiquei muito tempo plantado à janela, remastigava um
episódio de minha vida com Vera. Depois, após ouvir o apito de um barco na
ponte, pisquei rápido e, hi, hi, o rato ressurgiu, lembrando-me de que Nádia
tomava o meu café, abancada no meu sofá, em minha sala.
De uma virada repentina e violenta, mandei o rato aos
infernos. Ah, como é bom sentir-se valente! Senhor de si! Dono da situação! Mesmo
que seja por um segundo...
Bem se vê o tempo em que estive fora! Voltei à janela
e constatei que na rua não se via um pé de gente. A ponte deserta. Silenciosa.
Ao longe, o som de buzina de carro. E, de novo, o silêncio. Dentro do quarto, o
ressonar de Nádia.
Show dw técnica narrativa. Lances espetaculares: a alegoria que está na relação com o espelho, por exemplo, as camadas - a lembrança saindo da circunstância do momento narrado - enfim, um texto muito rico. Parabéns!
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