A
igreja agora é bonita. Limpa, por fora. Dá gosto olhá-la de longe,
destacando-se na Praça da Matriz. De perto, então, apura-se o olfato e ainda se
sente o cheiro da tinta fresca entrando pelas narinas e pelos olhos,
enebriando, deixando o povo tonto. Toda renovada, ela que é tão antiga. Suas
torres, braços incansáveis, erguem-se aos céus, clamando a Deus os inúmeros
pedidos. Maria Dasdolores de Vulpian, rogou a Nossa Senhora que curasse seu
filho Anjinho do puxamento que o maltratava desde que nasceu. Até mesmo ela,
que nunca adentrara aquele sagrado santuário, recebeu uma dose do santo
remédio, o restante da cura viria por merecimento. O menino, rosado nas
aparências, pareceu-lhe sarado. Acendeu duas velas pequenas e ficaram
acertadas, ela e a santa. O asmático, alheio ao acerto de comadres, continuou
fazendo suas necessidades no terreno da igreja, lá nos fundos, ao lado da
sacristia, onde dormia, num esquife, o Nosso Senhor Morto. Arriava o calção,
agachava-se e deixava no terreno a sua obra sagrada. E isso era sempre de
tardinha, antes de seu João Grande se dirigir à usina e botar o gerador para
funcionar. A figura enorme do homem, figura que faz jus à alcunha, aterrorizava
o menino. Por isso, sempre que Anjinho suspeitava a aparição de seu João Grande,
arrancava folhinha de mato e limpava-se às carreiras. E às carreiras saía do
beco do motor, gritando:
-
A vara! A vara!
Nesse
momento, ele já não tinha mais medo de seu João Grande. Agora, o que sentia,
era emoção. No canto da sala de sua casa, lá estava a vara comprida e flexível
de araticum. Pegava-a com mãos nervosas e saía correndo. Postava-se no oitão da
igreja e, com a vara à frente, aguardava. Logo chegavam os outros meninos, uns
com varas, outros com pedras.
Vulpian,
que então fumava encostado à porta de seu bar, disse:
-
Olhe, Dasdolores, lá estão os malvados.
Mal Vulpian acabou de falar e de dentro do bar, que também era sua casa, saiu seu
filho Anjinho com uma vara comprida.
-
Epa! Epa! Mocinho! Onde pensa que vai?
-
O menino parou, manso. A feição, de anjo remelento. A respiração e os olhos,
fiapos de nuvem. Os cabelos, louros, escorridos. As faces, sujas. E as mãos, determinadas,
segurando a vara. Continuou parado. Não era o menino que estava parado. Tudo
estava parado fazia tempo naquele lugar. Desde a fundação da Aldeia, que
chamaram de Aldeia da Purificação, com a chegada dos jesuítas da Companhia de
Jesus, no ano de 1654, com a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo. Os santos
encarnados vieram, plantaram coisas e se foram. Deixaram em seu lugar imagens
de barro, sacralíssimas. Deixaram a construção imponente, plantada no meio da Praça
da Matriz. Em redor, casinhas penitentes, ajoelhadas, diante da grande Casa.
-
Oxe! O que foi isso?
Uma
imagem nos passou de repente diante dos olhos. Chegou-nos como se fosse a
lembrança adormecida e fresca do furúnculo que o menino acabou de espremer.
-
Pare de mexer no furunco, menino; vai magoar a ferida, gritou-lhe o pai. Olhe
só para isso, Dasdolores, o carnegão de fora.
Ora!
Mas o menino nem percebeu que mexia na ferida. Olhou o dedo sujo de sangue
pustulento e de outras imundícies e rápido limpou a sujeira no calção. Saiu
correndo, gritando:
-
A vara! A vara!
-
Diabo de menino! resmungou o pai.
-
E não pode se cansar, Vulpian, disse a mãe. Mas é menino, e menino precisa de
brincar. O coitadinho... Deus tenha piedade... Meu anjinho...
Juntou-se
a outros meninos, que aguardavam seu João Grande ligar o motor. Essa expectativa só aumentava a emoção. As
mãos envolviam as varas de araticum com força. As pedras sonhavam um destino
certeiro. Jajá de tio Wilson disse:
-
Vou acertar o Diabo em cheio. Vamos seu João, liga logo esse bicho, gritava de
longe da usina.
Até
Zezinho de finada Linda de Epitácio, que só andava doente e nem aguentava dar
uma carreira, nessa hora arrotava:
-
Vou acertar dois de vez.
Só
Anjinho não dizia nada. Mas todos podiam ver nos seus olhos a bravura reluzir. O
motivo vinha de longa data, funcionava como rito de passagem dos meninos,
consagração a Deus e renúncia ao... Deus me livre, pois não digo esse nome. É
que também eu fui menino de lá. Os pais nem reclamavam.
-
É bom que se mate esses bichos; filhos do Diabo – os homens crescidos tinham
coragem de dizer.
Não
demorou muito e logo se ouviu o ronco da máquina. As luzes dos postes de
madeira se acenderam. Mas ninguém viu a luz, nem ouviu a Ave Maria que começou
a tocar no rádio, no bar de Olica. Nenhum dos meninos fez o sinal da cruz. Anjinho,
preparado, disse:
-
As varas! Aí vêm eles!
E
logo a legião de diabinhos se atirou rua afora e ganhou o beco da igreja. Formavam uma nuvem preta, assombrosa, davam
pequenos gritinhos e batiam as asas desordenadas. Chegaram rápidos, num
sobrevoo rente à cabeça dos meninos, e logo sumiram. As varas e pedras também mexeram-se
rápidas. Umas cortaram o ar ligeiro e
nada encontraram; já outras, certeiras, atingiram o alvo em cheio.
Cinco
morcegos no chão. Uns parados; outros ainda se debatendo, emitindo gritinhos estridentes.
Anjinho
chegou perto de um e disse:
-
Cara de rato. Rato, vira morcego! Rato vira morcego e foge tritritri avoando. Jajá,
morcego se desvira em rato?
Jajá,
que tinha resposta para tudo, respondeu, enraivecido:
-
Ele vai virar é diabo morto!
Levantou
o pé e desceu-o com toda a força sobre a cabeça do bichinho. Depois ficou
girando o pé, esfregando a cara do coitado no barro da rua.
-
É assim que eu me vingo, filho de Satanás!
Anjinho
achou o que Jajá fez muito errado. Deixou o morcego imprestável . Pois morcego
morto não serve para nada. Por isso ele olhou rápido para os outros que estavam
espalhados pelo chão. Viu um se arrastando, tentando fugir. Rápido, gritou:
-
Não mate, Jajá! Esse é meu.
-
Oxe, e vou lá matar! Já tive o meu; quero é ver se morcego se desvira em rato.
É todo seu. Pronto, já vi que não desvira. Pode matar.
-
Vou matar depressa não, respondeu Anjinho, olhos fixos no bicho.
-
Ora! E vai matar como?
O
menino não respondeu. Mas tudo já estava preparado: o tronco da bananeira no
fundo do quintal de sua casa, as brochas que arrancou de uma tábua velha, e
agora o morcego, que era o que estava faltando.
Jajá,
não tendo mais o que fazer, provocou:
-
Se desvira em rato nada!
Então
Anjinho, que saiu com essa novidade, explicou:
-
Desvira, sim; ele, deve, estar, é, com, vergonha. Fiiuuu. Ou, então, ainda, é,
novo; tem que, ser, morcego, velho... Fiiiuuu. Largata, não, vira, bor-bor-bor-bo-leta?
E...
-
Mas borboleta não desvira em lagarta, desvira, miadinho de gato? E não é largata, é “lagarta”.
E
Jajá deu uma carreira rua abaixo, à procura de praticar maldade com outros
bichos indefesos.
Anjinho
pegou o morcego, que ainda se debatia, e levou-o para sua casa.
Entrou
com o bicho meio escondido, para que seus pais não vissem. Sabia que iriam
reclamar. Pais, quando grandes, reclamam de tudo. O menininho nem pode levar um
bicho para casa. Tem que ser assim, escondido. Será que pais adultos pensam
que meninos são bestas? Tadinhos...
O
menino entrou foi na arte natural da sonsidão. No fundo do quintal colocou o
bicho sobre uma folha grande de cacaueiro. Olhou o tronco da bananeira.
Lisinho. Pegou as brochas, que deixara escondidas no porão de um de seus
barquinhos de cortiça, e pronto.
Foi
difícil segurar a asa direita e a brocha ao mesmo tempo em que segurava a asa
esquerda. Mas conseguiu enfiar a primeira brocha. A segunda foi mais fácil.
-
Pronto. Aí está você, pássaro do diabo, Anjinho praguejou.
Ficou
parado em frente ao morcego. De asas abertas, pregado no tronco da bananeira, o
bichinho imóvel, a cabeça ainda firme, querendo reagir, como se pretendesse
soltar-se do resto do corpo. Deu um gritinho de sofrimento. O menino se
arrepiou. É que a escuridão descera, e o menino, tão entretido com o morcego,
nem percebera. Mas a escuridão agora vem lhe dizer que mete medo. Que o
quintal, ali pelos cantos, sob as folhas, e logo mais por todos os escuros, o
ambiente agora é dela. Que ele deve entrar em casa, sair do quintal correndo,
antes que ela o prenda nas suas asas negras.
O
menino olhou para trás, rápido, como se tivesse levado uma cutucada de alguém,
ou de alguma coisa. Mas nada viu, ou viu apenas o grande vulto que crescia por
todos os cantos, e em redor de si.
Medroso,
deu uma carreira e entrou em casa.
Maria
Dasdolores e Vulpian mais outros filhos, que não interessa nominar nem
quantificar, já estavam à mesa. Anjinho
entrou correndo e foi se sentando no seu tamborete. A mãe foi até o fogão de
lenha, pegou a chaleira que estava sobre a trempe e derramou o café na caneca
do menino. Deu-lhe um bolachão e ele começou a comer. Depois que Anjinho
terminou de tomar o café, ficou na mesa ouvindo a conversa dos pais. Mas não
acompanhava nada do que eles diziam. Apenas algumas palavras febris lhe
chegavam desmaiadas.
“Puxamento.
Coitadinho. Na venda de seu... Piorando. Xarope de... Caro. Come, meu filho,
disse a mãe, pasando a mão na cabeça loura do filho. Vai ficar bom, disse o pai,
agarrando-se no invisível.”
O pensamento de Anjinho
estava mais voltado para o morcego pregado na bananeira. Pensou que talvez ele
já tivesse morrido. Ou se desvirado em rato. Concluiu que, se ele tivesse se
desvirado, já não estava mais lá. Se ao menos ele pudesse vê-lo. Mas o quintal
tão escuro! Espiou pela janela, mas não viu nada. Até colocou o fifó na direção
da touceira de bananeiras, viu um vulto atravessar o clarão do fifó e se
embrenhar por trás das folhas, fechou a janela rápido e foi dormir.
Logo
toda a casa entraria em sono profundo. O dia começava bem cedinho, com o céu
ainda escuro, mas enfeitado de estrelas. A mãe cuidava de tudo. Acendia o fogão
para fazer o café. Acordava os meninos para irem à escola. Depois que os
despachava, intercalava os afazeres domésticos com ajudar o marido no bar. Os
meninos chegavam da escola, almoçavam e iam brincar, ou então tomavam banho no
rio, ou judiavam os catendes, ou matavam murunhanha, ou não faziam nada, apenas
paravam alerdados, espiando o tempo passar se arrastando, na rua. Os dias eram
longos.
A
mãe acendeu a lamparina no quarto dos meninos. Deixou a chama bem baixinha,
para economizar gás. Rezou o Pai Nosso com eles, deu um beijo em cada um e
saiu.
Logo
todos dormiam. Menos Anjinho, que não conseguia desgrudar o pensamento do
morcego pregado no tronco da bananeira. Os irmãos todos enrolados em cobertores
franciscanos grossos e macios. O silêncio doía nos ouvidos. Um som ensurdecedor
que vinha não se sabe de onde. Se ao menos ele pudesse dormir logo. Mas não, tem
de ficar pensando no bicho pregado na cruz. Bicho pregado na cruz? Nessa hora o
menino avistou o Nosso Senhor pregado na cruz. Ele bem à sua frente, na parede
do quarto. A luz da lamparina sem alumiar bem. Luz confusa. Luz que mistura o
claro com o escuro, numa dança enebriante. As horas entontecidas, deixando a
noção do tempo lassa. É de deixar a vista maluca. Umas visões. O Nosso Senhor
pregado na cruz se mexendo. Talvez ele ainda
esteja vivo, e sofrendo. Isso é maldade. O menino já arrependido, pede perdão a
Nosso Senhor, pois não devia ter feito aquela ruindade. Que animal é mamífero e voa? Ouve a professora
perguntar, na escola. Ninguém soube responder. Então ela disse que galinha era
animal ovíparo; e o cabrito, herbívoro. E o morcego? O morcego é o quê? ela
perguntou. Anjinho se adiantou e respondeu:
-
Sanguífero, ele respondeu. Sanguífero! Sanguífero! ele grita bem alto agora, mas
o som morre-lhe no peito asmático.
A professora não achou graça. Disse que a
resposta estava errada. Botou o menino de castigo. Agora ele já sabe que
morcego é mamífero, e voa. Mas que castigo! Que mal ele fez para ficar pregado.
Ele tem a cabeça pendida para o lado. Ele já deve estar mesmo morto. Mas se
está se mexendo? Morto é morto. Morto não é vivo. Mesmo assim o que é morto dá
medo. Ele é tão magro. É de hoje que Ele morreu... Esse era homem e virou anjo.
E o anjo se desvirou em homem no terceiro dia. E o outro, vai se desvirar em
quê? Quando?
Veio
a noite alta e o menino lá, acordado. Até fez força para dormir. Mas visões
assustadoras afugentaram-lhe o sono. Começou a sentir medo. Ora, mas medo de
quê? Só por que matou um bichinho maldito? Estaria ele com medo de ser castigado
por esse Deus pregado na cruz? Ele nem está olhando. Mas o menino de vez em
quando levanta um pouco a beira do cobertor e gruda os olhos no Jesus
crucificado. Ele tem uma luz em seu redor. É a luz da lamparina que ilumina mal
o quarto. Antes estivesse tudo escuro, assim não viria o olho de Deus, que tudo
vê, mesmo sem estar olhando. Ou seria coisa da cabeça da criança? Crianças têm
esses medos aprendidos, que apreendem-nas, prendem-nas na pior prisão, aquela
que é construída dentro de cada um. Para onde quer que se vá, a prisão interior
o acompanha, não há liberdade do lado de fora. Meus Deus, não há liberdade!
Disseram-lhe que Deus
castiga menino mau. E ele agora é um menino muito mau. Quem mandou matar o
morcego? E Jajá? Estaria ele acordado nesse momento, com medo de ser castigado
por Deus? Ou será que ele dorme, sem culpa, sem nada? Jajá ao menos é corajo e
não pensa essas coisas. Mas Anjinho, não. Anjinho nem deve ter tanto medo. O
que ele tem mais nesse momento é culpa, remorso por ter matado o morceguinho,
que também é uma criatura de Deus. Anjinho uma vez disse que o Diabo, até o
Diabo, é uma criatura filho de Deus. Que tudo que existe no mundo é criação de
Deus. Mas nunca soube dizer a ninguém quem criou Deus. Na aula de catecismo, o padre
perguntava:
-
Quem é Deus?
E
Anjinho, mais os outros meninos, respondia:
-
Deus é o criador de todas as coisas.
-
De que é feito Deus?
-
Deus é feito do nada.
Então
pronto. Tudo estava explicado. Mas um dia Anjinho, relutante, perguntou ao padre
se Deus era o pai do Diabo. O santo homem quase teve um troço. Arrancou o
menino da cadeira puxando-lhe as orelhas, deu-lhe doze bolos e o colocou de
castigo, de braços abertos por meia hora no pátio da escola, para que todos que
passassem vissem o grande maldito que é esse menino. Desgraçado! Maldito! Não
dá raiva mesmo? Ele ficou lá, meia hora e mais um pouquinho, feito um Cristo
chorão. Bem feito!
“Morre,
desgraçado, morre! Pássaro negro, filho das trevas. E cravou-lhe mais outra
brocha na asa esquerda.”
-
Engole o choro! Engole o choro! Disse a professora – ou terá sido o padre? -, apontando-lhe o dedo na cara.
Um
pecador o Anjinho, um pecador. Não lembra o que ele fez com o morcego? Deixou-o
crucificado no tronco da bananeira. Até parecia que tinha raiva do mundo. O que
os outros meninos não entendiam era o que Anjinho dizia, rangendo os dentes,
quando fazia uma maldade:
-
É assim que me vingo, filho do Cão!
E
foi pensando essas coisas que Anjinho, num momento de descuido, nem sentiu a noite
soprar-lhe nas vistas e nas narinas um ventinho de sono.
-
Fiiiuuu! expirou profundo. E fechou os olhos.
A criança continuará
sonhando mistérios...
Excelente contista, como sempre. Vc é talento puro, amigo.
ResponderExcluirObrigado, querida amiga. Beijo
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