Rio Barcelos

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quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Natureza


       Abriu os olhos com o cantar do galo num terreiro distante. O negrume da noite ainda se escondia sob as folhas das gameleiras e dos cacaueiros. No céu brilhava a estrela d’alva. Na rua um vozeirão de homem convocava para a pescaria.
   Ei Lapinha, acorde, tá na hora.
   Babo, ei, Babo, vambora, rapaz, tá na hora.
No mesmo horário vinha João do barco avisando quem fosse viajar para Camamu que estava na hora de acordar. A maioria já estava com o café tomado e com a bagage pronta. João do barco só chamava uma vez. Chamava e descia para o porto. Muitas vezes o rio estava seco e os viajantes tinham de andar até a boca do rio, na coroa, onde o barco estava ancorado. Se o rio estivesse um pouquinho mais cheio, mas não tão cheio que o barco pudesse entrar ou não suficientemente seco para que os passageiros pudessem seguir a pé, os viajantes tomavam uma canoa emprestada ou então pegavam carona com algum pescador que estivesse saindo e iam até o barco. As mulheres iam acocoradas no fundo da canoa. Os meninos já maiorzinhos equilibravam-se de pé. O remador ia atrás, na popa, também de pé. E fincava o remo na areia do fundo do rio e empurrava, a canoa avançava desequilibrando-se um pouquinho e as mulheres faziam ui, os meninos davam um risinho fazendo pouco do susto que as mulheres levavam. Os maruins atacavam a pele. Os sururus na lama do mangue estalavam. Os aratus e os caranguejos espiavam com seus olhos compridos. E o cheiro do mangue e do mar era tão forte! Era a natureza em todo a sua vitalidade. E o corpo do remador também era forte. E sua pele era da cor da lama do mangue. O remador era uma extensão da água do rio e da lama do mangue. A água do rio era salgada e inundava o ar com seu cheiro forte de maresia. Assim também era o homem, do seu corpo transpirava um suor salgado e o cheiro que saía junto era cheiro de mar, de sal, de lama. O homem fazia parte daquela natureza. E ambos, homem e natureza, conviviam harmonicamente, interpenetrando-se, confundindo-se, fundindo-se um no outro. O homem feito de mar e lama ia na popa, e do seu rosto negro espiavam dois olhos brancos... uma garça piou assustadiça e avoou no céu...
O homem feito de mar e lama apoitou a canoa do lado do barco. Os passageiros, os homens com jeito, as mulheres desajeitadas, transpuseram-se para a embarcação que os levaria a Camamu. O homem da canoa puxa a poita, dá um empurrão no bojo do barco e a canoa se afasta disparada. Já vai lá longe, beirando o mangue, confundindo-se, fundindo-se, sumindo-se... só se vê um céu azul emborcado no mar, e um manguezal verdejante a perder-se de vista...

* * *
João do barco gira a manivela do motor e o barco treme nervoso. O eco seco da máquina bate no mangue e o tá tá tá tá tá ressalta, ressoa, é o atabaque da mata, tá tá tá tá tá.
No espelho trepidante do mar avoa uma garça... lá no profundo das águas, perto do céu azul...

Trecho de O Pescador de Almas

2 comentários:

  1. Uma prosa de grande qualidade.

    Abraço

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  2. Que bonito, Flamarion! É poética essa ligação do homem com o mar, com a natureza. E você a transmitiu de forma tão bela. Parabéns, meu amigo. Um abraço.

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