Rio Barcelos

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terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Olhar mortiço de sedução



Romildo passou e falou com Janaína, na praça. Ela derramou um olhar mortiço de sedução pra cima dele. O besta não percebeu. Com uma visgueira na mão, ele disse que ia pegar um guriantan que tinha visto no pé de capiá, no quintal de dona Carmelita.
   Eu te dou ele de presente pra você, Janaína.
Ela, que já ia lá adiante, virou-se e foi esparramando pelo chão, até alcançar os olhos de Romildo, um olhar grudento. Tão grudento como aquela visgueira que ele tinha na mão. O corpo do moço buliu. O coração disparou. Ele deu uma carreira. No mato esqueceu o passarinho. Escondido numa touceira de bananeiras, invocou o feitiço da alma de Janaína. Arriou o calção, fechou os olhos e mandou sua alma lambuzar-se com a alma daquela diaba. Um fogo subiu-lhe por todo o corpo. Eram as formigas de fogo e as formigas caçarema atiçando fogo no corpo dele. Gozou, aliviou-se. Livrou-se das formigas e foi ver se ainda pegava o guriantan que cantava no pé de capiá, no fundo do quintal de dona Carmelita. Chamou-se de sortista, o bichinho ainda estava lá, e mais bonito, mais colorido, azulado nas costas, o peito amarelo, e trinava forte. Mansinho, pareceu-lhe. Subiu na cerca e trepou numa galha do pé de capiá, sem fazer barulho, sorrateiramente como ele sabia se mover no mato. Pensou em Janaína. Ela ia gostar do presente. Um presente de amor. E o guriantan ia cantar todo dia de manhã cedo e o canto dele ia entrar no ouvidinho dela, no pensamento, e ela ia pensar que era um sonho colorido. Sonhava com Romildo e arriava de novo aquele olhar meloso. Acordaria pensando nele e descobria que o amava. O guriantan, agora pulou para a outra galha. Romildo, sabe-se lá por que diabos, resolveu que ia pegar o pássaro de mão. Contaria a Janaína como foi e ela ia ficar garbosa do feito. Não era gabação não. Romildo tinha mesmo jeito para pegar passarinho. Tinha dias que ia pro mato e voltava com japiranga, sabiá, até sanhaço; os beija-flores chegavam mortos, de badogada; e os sanhaços, estes não sobreviviam em gaiola. Os nicos eram engraçados. Pegava-os todos, passarinhos e outros bichos, no manzuá. Os coitadinhos entravam pelo buraco e não encontravam a saída. Mais um pouco e Romildo botava a mão no guriantan. Bateu um vento. A árvore fez que ia cair. Romildo se segurou. A galha embalançou. O passarinho avoou. Pousou, na ponta de uma galhinha, fina, lá Romildo não ia. “Eu vou”, disse ele. O vento ficou por ali. As outras árvores, quietas ele as deixou. Rondava o pé de capiá. O guriantan abriu as asinhas eufóricas, afinou o bico e cantou forte. Romildo se encantou. Pensou em Janaína. O passarinho, ali, pertinho. Lançou a mão, o passarinho, rápido, avoou. Voou para longe no vazio, assoprado pelo vento que o levou. E Romildo, não achando nada no vazio, desequilibrou-se e de lá do alto seu corpo despencou. Ainda ouviu o badalar dos sinos da igreja de Nossa Senhora das Candeias chamando o povo para a procissão. Ainda ouviu, na queda, o farfalhar agoniado das folhas do pé de capiá. E o último som que ouviu foi o do próprio corpo caindo veloz, cravando-se nas estacas da cerca.
Na igreja, o sino badalava, e não havia cortejo nenhum para a alma de Romildo, que já ia longe, travada, para nunca mais...
No mato um bacurau piou...
***
Trecho de O Pescador de Almas
Foto de Roberto Harrop - Guriatã ou Gaturamo verdadeiro (Euphonia violacea) - retirada do Flickr

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