Rio Barcelos

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sábado, 5 de junho de 2010

Lembrança de um amigo distante


Carlinhos era meu melhor amigo. Eu era o melhor amigo de Carlinhos. Um dia nos apaixonamos pela mesma menina. Então Carlinhos e eu brigamos. Carlinhos passou a ser meu pior inimigo. Eu passei a ser o pior inimigo de Carlinhos. Mas, como não bastasse apenas sermos inimigos declarados, provocamos um duelo. Fazia-se necessário saber qual de nós era o mais forte.

Carlinhos era um menino muito magro. Não fiquei intimidado quando arregaçou a manga da camisa e me mostrou seu muque. Em resposta mostrei-lhe o dedo médio, bastante rígido. Foram contar a meu pai que eu dera o dedo para Carlinhos. Por conta disso levei uma surra.

Meu pai me batia sempre com o seu velho cinturão de couro. Pude sentir com os dedos as marcas decalcadas nas minhas costas. O meu pai nunca me batera tão forte assim antes. A partir daí criou-se em mim um ódio especial por Carlinhos. Ódio que antes jamais sentira por alguém e, agora, posso dizer, nem mesmo depois.

Zelito, o novo melhor amigo de Carlinhos, veio me dizer o local.

— Atrás da igreja. Daqui a pouco.

Vou acabar com ele. Acabo com você também.

Então vai ser você contra nós dois.

Fui eu contra eles dois. Apanhei de Zelito. Bati muito em Carlinhos. Porrada especial foi um murro que lhe acertei na cabeça. Gabei-me desse murro. Dona Zica, a mãe de Carlinhos, ficou indignada quando soube da briga.

Ora, meu Deus, mas eram tão amigos!

“Eram”, respondi. “Eram”, 3a pessoa do plural do verbo ser; pretérito “imperfeito”. Dei-lhe as costas.

Ora, mas como “é” estúpido. “É”, 3a pessoa do singular do verbo ser, presente do indicativo. Hum!

Naquele tempo sabíamos conjugar verbos.

Namorei a menina alguns dias. Mas a conjugação parece que não foi perfeita e o namoro acabou. Carlinhos foi morar em outra cidade e isso faz... faz talvez uns vinte e sete anos. Nunca mais nos vimos. Soube que Carlinhos enveredou-se no mundo das drogas. Triste.

Engraçado. O que me faz escrever não é a lembrança de um amigo. Lembrança distante porém tão viva e rica em detalhes na minha memória. O que me faz escrever é o esquecimento. Esquecimento de um amor que foi maior que a amizade. Amor que não deixou marcas no meu coração. Amor que o tempo apagou.

O que me faz escrever, inesquecível amigo Carlinhos, é o nome. Me diga aí, meu velho, qual era mesmo o nome da menina?

12 comentários:

  1. A ironia do tempo e seus lançamentos rumo ao esquecimento. O conto é uma delícia!

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  2. Muito bom. E verdadeiro. As paixões com seus entusiasmos podem provocar perdas importantes, no entanto elas se esvaem, e quem sabe, as coisas que perdemos por elas poderiam ter grandes significados às vezes por toda a vida. Não perca um amigo (a) por causa de uma paixão, não vale a pena.

    Gláucia Lemos

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  3. nossa que história!!,
    taí, me fez pensar.
    o motivo da briga importa (pra sempre) como alimento.
    e o revanchismo, sobreviveu?

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. A história se completam: a ficcional e a verdadeira. Todos temos essa história do grande amor inesquecível.

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  6. Gostei muito do seu blog e do último conto.
    Muito bom, mesmo.
    Abç
    América

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  7. Cântico dos Cânticos na Bíblia, texto inspirador da literatura cortês: "Não despertem o amor de seu sono..., pois ele é um inferno"
    Do baú da sua memória você extraiu um momento de ligação entre todos nós. Meus parabéns. Um grande abraço.

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  8. Puxa, Flamarion, sua escrita sempre entra na gente como faca. Parabéns pelo começo, meio e fim (?) da narrativa. Mão de mestre.

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  9. Flamarion gostei do seu texto, mas o senti mais como uma crônica.

    Vai o meu blog :
    http://riosderumor.blogspot.com/

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  10. Perfeitooooo seu texto.
    E uma linda história, mesmo que tenhas perdido um amigo, que poderia ter sido pro resto da vida (Quem sabe).
    Adoreiiii!!!

    Um abraço!

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  11. A amizade é o maior amor que se pode ter, mas isso só descobrimos com o tempo, com a maturidade. Grande abraço.

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  12. Parabéns! Gostei muito das reviravoltas do texto!

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