Rio Barcelos

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terça-feira, 13 de abril de 2010

Velas no mar


Dois homens bebem no bar de Preto, na praça da Matriz, em frente à igreja. Raimundo Reis é o que está enfezado e a todo instante blasfema.

– Maldito mar! E vira o copo de cachaça.

João do Velho, seu companheiro de pescaria, parece distante dali, os olhos no cachorro, a seus pés. O animal é já bem velho e a qualquer hora embarca.

– Livre-se desse bicho. Tornou-se imprestável, diz Raimundo Reis, tentando acertá-lo com a ponta do pé, enxotando-o por debaixo da mesa.

João do Velho, agora, prestando atenção ao que diz Raimundo Reis, nota o decrépito cão deitado a seus pés. Imagina que logo terá de enterrá-lo, como se faz a um amigo. Não entende o que ainda o mantém vivo. Seu latido, antes rouco, há muito deixou de ser ouvido. Se o chamam pelo nome, mantém o olhar no chão. Parece envergonhado, sem entender por que ainda vive. Às vezes delira, e num surto maluco imagina latir, pular, sorrir balançando o rabo ao seu dono, fazendo-lhe festa, mas não passa de ataque epilético. Treme-se todo e baba. Sem saber o tratamento adequado, derramam-lhe água na boca, sopram-lhe nas narinas. Minutos depois o cão revive, ergue-se cambaleante e caminha sem saber bem para aonde.

– Mas que diabo aconteceu? pergunta Raimundo Reis.

– É que ele está bem velho.

– Ora, vá-se ao diabo, homem! Estou lá me referindo a esse monte de ossos! O que houve com o mar? Onde se meteram os peixes? Isto sim é o que quero saber.

– Amanhã eles voltam, diz-lhe João do Velho, alisando as costelas do animal.

– Amanhã eles voltam, amanhã eles voltam! Ao diabo, você e esse maldito cão! Assim é que não dá!

– O que quer dizer?

– Ora, ora, compadrito! O que quero dizer. Como se não soubesse. Explodi-los. Explodi-los. Isto, sim, é o que quero dizer.

João do Velho grita ao proprietário do bar:

– Preto! Suspenda a bebida deste homem. O traste não tem jeito.

– Mas há um jeito, Raimundo Reis continua. Há jeito para tudo, menos para a morte, é claro. Amanhã mesmo atravessamos o Canal, e lá, na Gerumana, senhor Celso nos fornec...

– Ora, ora, ora, senhor! Então será que já se esqueceu de finado André de Marina do Campo?

– Um tolo, um tolo que não percebeu o momento de soltar.

Bebem calados, por fim, resolvem atravessar o Canal no dia seguinte, bem cedinho, com o céu ainda estrelado. Celso lhes fornecerá o material.

– Preto, aqui o dinheiro da bebida, diz Raimundo Reis. Amanhã é você quem paga, compadrito, e bate no ombro do amigo.

– Até amanhã, então.

– Até amanhã. Leve fogo e cigarro.

– Vem, Amigo, vem, João do Velho chama o seu animal.

Ambos, trôpegos das pernas, seguem para casa. O homem chega primeiro. Parado e com a porta aberta, aguarda o cão entrar. Ele fareja o chão, onde, provavelmente, uma fêmea se agachara e mijou. Sem ter forças para levantar uma das pernas traseiras, agacha-se um pouco e mija na grama.

– Vamos, bicho danado, pare de inventar lembranças.

O animal entra. No corredor, ele pára e olha o móvel à sua frente, onde costuma se deitar. Sem forças para sequer levantar uma das patas, João do Velho ergue-o e acomoda-o na marquesa. O bicho gira três vezes e se arria, batendo os ossos nas tábuas. Não muda a feição séria. Estica as patas à frente e assim permanece.

Vem a noite. João do Velho preocupa-se com o que acontecerá no dia seguinte. Imagina que fará mal à natureza, matando-a sem controle. Quantos peixinhos mortos... quanta vida interrompida... Tragédia. Tragédia. Mas as tainhas são muitas. Todas boiando, prateadas, reluzindo seu drama à luz do sol. Basta lançar a mão e apanhar o peixe. Fácil. Fácil. Umas afundam, mas lá embaixo já está Raimundo Reis, cheio de fôlego, a apanhá-las. Depois de recolhido o peixe, “vamos embora, compadrito, que a pescaria hoje foi boa.” O mar vermelho. Vermelho. Vermelho.

João do Velho acorda no meio da noite. Os olhos maculados de sangue. Mas logo desfaz a impressão do sonho ruim que tivera, e apura o ouvido. Imagina ouvir algum ruído fora do quarto. Fica quieto, só escutando. Define o trincar das tábuas da marquesa. Talvez o animal esteja inquieto. Deve ter tido também um sonho assustador, pois bicho também sonha, um desses pesadelos magníficos que deixam o coitado certo de que o sonhado é realidade. Acorda angustiado, e ninguém é capaz de lhe entender.

Logo, João do Velho pensa que o som é ilusão dos seus sentidos. A luz da lamparina, imóvel. Não projeta sombra nas paredes. O santo sobre o armário, quieto na figura de papel. Tudo parado, como se a apurar o ouvido, para decifrar o que vem de fora.

– Mas não pode ser, João do Velho diz para si.

Levanta-se, abre a porta e vê o animal sentado, a cabeça erguida.

– Ora, mas você não está gemendo, está uivando.

Enquanto João do Velho se recupera do susto que o animal lhe dá, batem na porta.

– João do Velho! Ei, João do Velho! Tá na hora.

É Raimundo Reis. Traz os olhos miúdos de cansaço. Mas a decisão do homem em realizar a travessia é mais forte do que qualquer cansaço. Tudo muito simples: descem a ladeira do porto, pegam a canoa apoitada na beira do rio Barcelos, remam até à Coroa, e daí à Ilha da Gerumana é um pulo. Senhor Celso os espera com as bananas embrulhadas em um pacote. Os olhos sempre atentos à tamanca dos homens da Capitania dos Portos, que é mais veloz que os barcos tóc-tóc. Tudo tranqüilo, nada de embarcação à vista, tome lá o dinheiro, dê-me cá o pacote. E pronto.

– Não vou! João do Velho diz decidido.

– Ora, ora, compadrito, como assim “não vou.” Que história é essa?

– É o Amigo, deu para uivar de repente, e logo ele, que há anos não emite um ruído.

– Bom, bom, sinal de que a estrada do infeliz se alonga.

– E a sua, Raimundo Reis? E a sua? Por que entrar nessa barca furada?

– Ê, é o diabo. Não me venha com essa conversa de mulher casada. E eu lá tenho rabo de saia!

– Não vou. Não posso ir. Esta é a minha decisão. Peço que você também não vá.

– Ora, ora, compadrito, não venha me dizer que vai abandonar a pescaria por causa de um saco de ossos.

João do Velho não dá resposta ao amigo. Pensa em lhe rogar que abandone a travessia do Canal, pois não prevê coisa boa na Gerumana. Mas nada lhe diz. Quando procura o amigo, não o vê mais.

– Ele se foi.

Amanhece. O galo canta num terreiro distante. João do Velho alisa a cabeça ossuda do animal, que agora está quieto. João do Velho sente frio e abraça-se. Pensa na cama quentinha. Levanta-se. Ao abrir a porta do quarto, um vento delicado entra e desfaz a última chama da lamparina.

10 comentários:

  1. Um conto construído 100% com talento e com o conhecimento do ofício.
    Final de mestre.

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  2. Flamarion:
    Este conto é um trabalho de mestre. Parece capítulo de romance. Por que não desenvolve para um romance de mar?Sinceramente, você tem muita espontaneidade para esse tipo de narrativa. Já tem dois personagens muito interessantes, muito curioso o João do Velho como seu cão. Rapaz, que material! Beleza!. Um beijo.Gláucia.

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  3. Já li seu livro e agora estou acompanhando seu blog, rsrsrs. Mais sucesso e inspiração pra vc!!!

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  4. Ótimo conto!! Muito bem escrito e estruturado!!

    []s

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  5. Muito bom o contexto do seu blog, caro

    retorno mais, mas te sigo aqui, abs

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  6. Talento, talento e talento invejável: esse post não pode ser ponto de partida para um romance? rsr
    Te sigo
    Abraços

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  7. OI FLAMARION,

    que belíssimo texto.

    Já estive aqui outras vezes, e sempre esqueço de no final, convidar-lhe para conhecer meu blog de humor: Humor em texto.

    Desta vez não esquecí.

    E quanto a você Flamarion :é um tremendo profissional.

    Um abração carioca!

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  8. Olá , Flamarion.

    Desculpa não ter lhe escrito antes, pra agradecer o envio do conto. Fiquei sem internet por problemas aqui no meu prédio. Como ontem viajei pra Salvador - foi uma visita rápida pra comversar com Lícia.

    Gostei muito do conto, especialmente porque adoro personagens como João do Velho, de uma ternura só!
    Parabéns!

    Quero sempre ter notícias suas.

    Grande abraço.

    Mary Jane

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  9. Puxa, Flamarion, seu conto me deixou perplexa. É de uma perfeição que assombra. E que final! Que estruturação! E que humanidade... Parabéns!

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  10. Oi, Flamarion, sua literatura é que é verdadeiramente grande. Um abraço.

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