Rio Barcelos

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sexta-feira, 7 de maio de 2010

A viagem de Adelice


Adelice de Carlinho do Gravatá foi outra. Ficou doida de repente.
Um dia ela vinha com o pai numa canoa. Iam pegar o barco de Tião, que ia para Camamu. O barco parou e a canoa veio se encostando.
— Bom dia, seu Tião.
— Bom dia, Carlinho. Bom-dia, essa menina.
Mas a menina não respondeu. O pai reclamou, chateado. Não dava luxo mas educação dava sim senhor.
— Adelice, minha filha, dê bom dia a seu Tião.
— ...
O pai ficou sem graça. Como podia ser isto? Então quer dizer que toda a educação resultou inútil? A menina era orientada em casa a ser educada, principalmente na presença de estranhos. Que disesse bom dia, boa tarde, como vai o senhor, a senhora, por favor, pois não. E agora, ali, logo na presença de seu Tião, Adelice resolveu fazer feio. E como não? Claro que vão comentar:
— A filha de Carlinho, ah, mas que moça mal educada!
E vão pensar logo: o pai não a educa.
— Adelice, minha filha, a senhora não me ouviu? Vamos, dê bom dia a seu Tião.
A menina nem ouvia mais nada. Sentou-se na beira da canoa e olhou para um canto, para outro, para o nada. E de repente começou a rir. Mas ria bobamente, um riso sem sentido. Um riso que aos poucos foi se transformando em choro.
O pai viu aquilo e não se aguentou.
— Minha filha, minha filhinha, o que aconteceu?
O homem era um forte, é certo, mas ele preferia um soco, ou a perda de um braço, uma perna ou outro órgão qualquer, até que fosse a sua própria vida, a ver a filha naquele estado de inércia. Carlinho era um forte, mas depois desse dia Carlinho virou ruína de homem. A filha enlouquecera, constataram todos.
— Vamos, Carlinho, não fique assim que não há de ser nada. Logo passa.
— Não! Não! Com a mãe, minha finada esposa, que Deus a tenha, foi a mesma coisa.
Tião lembrou-se de uns tantos casos de loucura, de trabalho feito, de lua ruim, de vento carregado, mas não falou nada, precisava era seguir viagem.
— Carlinho, pegue sua filha e volte para casa.
O homem apoiou as mãos no bojo do barco de Tião e, empurrando-o, fez com que a canoa se afastasse.
Carlinho sabia que aquela era uma viagem que não tinha volta. O que não podia era embarcar nela. O homem tinha que ter este prumo.

4 comentários:

  1. Li duas vezes, Flamarion. Beleza de conto. Adorei aquele jeito do Tião: "bom dia, essa menina" Uma expressão que já se usou muito por aqui e, infelizmente já que é uma coisa muito regional, perdeu-se. Só pessoas mais antigas interioranas, ainda dizem "essa menina" expressão que substituia o nome próprio da interlocutora.Só na minha infância escutei isso mas só na Bahia; vivi parte da minha infância em ARacaju, capital de Sergipe, e lá, dizia-se "fia", seria "bom dia, fia", não sei se é corruptela de filha. A televisão, que trouxe o falar das capitais do sul, por ser o berço dos canais de tv, trouxe também esse prejuízo, eu considero prejuízo, unificar o sotaque e o linguajar das cidades, acabando com as expresões regionais que são uma riqueza da língua. Voltando ao conto, acho que já lhe disse que me identifico muito com as histórias de mar e você as narra com uma espontaneidade admirável. Mande-me mais sempre que puder, lê-los é muito gratificante. Parabéns ao escritor. quando é que vai sair o livro? Grande abraço. Gláucia

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  2. Oi, Gláucia.
    Seu comentário é pertinente. Passei minha infância em Barcelos do Sul, vilarejo fundado pelos jesuítas da Companhia de Jesus, no ano de 1654. O português conservador falado no lugar, permaneceu. E isto, devido ao isolamento e à falta de contato com o povo da capital. Foi como você disse,a televisão e outros meios, encurtaram distâncias, e as novas gerações vivem esse momento. Muitos costumes se perderam. Me lembro que em Barcelos a maioria falava: piaçaba, trabisseiro, bassoura, etc. Na escola, a professora condenava essas formas. Só na faculdade, nas aulas de Latim e Português no Brasil, foi que fui entender que essas formas eram de um português conservador, e que aos poucos o "b" foi dando lugar ao "v". Para o pessoal de fora, falávamos "errado", ou seja, sofremos preconceito linguístico, por ignorantes, é claro. O mesmo acontece com o nosso gerúndio, que é tão combatido, talvez por ter caído em desuso em Portugal, e que é, para nós, apenas uma forma de um português conservador. Há outras palavras e expressões que ainda continuam vivas em Barcelos do Sul. Minha infância passei no período colonial. Mas, de uns trinta anos para cá, as mudanças por que Barcelos do Sul passou são muitas.
    Quanto ao livro, está entrando no forno. E ele trata, entre outras coisas, justamente desse resgate do linguajar e costumes de um povo.
    Grande abraço.

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  3. Excelente! Aliás, vc já sabe que está escrevendo bem demais.

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  4. Adorei este conto.
    Meu nome e Adelice e sou bastante timida!
    Progresso!!!

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