Rio Barcelos

Rio Barcelos

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

A propósito de uma história



Uma história se passou na minha infância e até hoje a trago como verossímil na memória. É a história do pescador de almas. Poderia não dizer assim, já, de cara, de que se trata, deveria esconder as unhas, os dentes, a malícia do bicho, até que... vamos à história.
Eu era menino e brincava na grama, lembro-me bem a cor e o cheiro desse dia. Talvez tivesse cinco ou seis anos. Não. É certo, contava nove. A certeza vem de uma bermuda azul, presente de meu pai. Não lembra que fazia anos e que eram nove? Não lembra o dia verde e o cheiro de chuva? Que um pescador passou com remo e samburá nas costas? Outro pescador, e outro, e... passaram seis, lembra? Lembra que um deles era seu Vivaldo? Não lembra? Aquele alto de pele queimada de sol, chapéu de abas largas; o que passou primeiro, com remo e samburá nas costas. Lembra? Ah, bom. Pois não se esqueça: este homem é a réplica do Diabo. Ah, não sabia  que o Diabo tem réplicas? Pois fique! O Diabo tem réplicas e as têm muitas. Um mascarado.
Os pescadores passaram. Uma senhora branca, de cabelos brancos, nariz firme e testa pequena, apareceu na janela de minha casa. Chamou-me.
— Vem cá, meu filho!
Eu, como queria ficar brincando, fiz corpo mole.
— Ah, mãe...
E ela, firme como sempre fora, agora ordenava, porém tinha na voz certo melaço.
— Vamos, vem que não vais te arrepender.
— O que é? É doce, mãe?
Fui correndo. Chegando em casa, na sala, vi meu pai de pé, a mão direita nas costas, sorria.
— Vamos, vem cá, menino.
Aproximei-me e ele, rápido, estendeu-me a mão que estava escondida e apresentou-me um embrulho. Eu não soube que fazer. Tinha certo acanhamento em presença de meu pai. Estanquei abobalhado à sua frente.
— Como é? Não queres o presente?
Temeroso — temia por respeito — recebi-o de sua mão.
— Como se diz? — perguntou-me minha mãe.
— Obrigado.
— Obrigado, meu pai — completou ela.
— Obrigado, meu pai — repeti.
— Dá um abraço em papai — mandou minha mãe.
Abracei meu pai, abri o embrulho e vi, veja você também, não é bonita minha bermuda azul?
Anos depois soube por minha mãe que a bermuda tinha sido um presente pela passagem de meu aniversário.
— Fazia quantos anos, minha mãe?
Respondeu-me nove. Ah, mas isso já faz tanto tempo, apenas conto para dar-te prova de minha idade na ocasião do Diabo. Vamos a ele.
 Aproveitemos que ele pesca para construir-lhe uma casa. É preciso ter casa. Não se vexe, esta é simples, e, com sua ajuda... —, obedece à arquitetura local: quatro toras fincadas, uma em cada ponta do quadrado, varas dispostas na vertical e horizontal, atadas com cipó, buracos tapados com barro batido, varas estendidas sobre a construção, piaçaba estendida sobre as varas e pronto, eis aí a casa de seu Vivaldo. Limpemos pés e mãos, todo o corpo, aliás, e entremos de vez.
Oxente, entramos na casa errada! Mas a história é assim mesmo: constrói-se em cima do tempo e do espaço. Nem sempre certo é o tempo, nem sempre bem demarcado é o espaço. Por isso entramos na casa do tempo errada. Ou, quem sabe o erro é um acerto?
A casa fica na Rua do Campo, pertence à família dos Policarpo, o tempo é que é um tanto incerto, 1965, 1970... 1973! A data certa vem da derrubada do casarão; aquele em ruína, lá perto da Praça da Matriz. Lembra? Foi em 1973. Houve coincidência de nossa entrada na casa com o fato.
Pois nessa casa mora uma moça. Ei-la sentada a coser um vestidinho. Vai casar-se, o seu nome é Sônia, 20 anos, boa moça, prendada... vai casar-se com Vivaldo, o pescador. O acerto — eis o erro — do casório já foi comunicado a todos. E todos estamos felizes pela união de Sônia e Vivaldo.
Epa! Essa última frase quem disse foi o padre.
Casados, vão morar na Praça da Matriz. A casa parece a Sônia um mondrongo, mas, como o olho se acostuma rápido com o que vê, com o tempo vai gostando.
— É a casa do meu amado! É a casa nossa! A casa dos meus sonhos! Ah, como sou feliz!
É, Sônia amava mesmo o marido. Mas vamos aos fatos.
Passaram-se cinco anos e nada de Sônia engravidar. Engravidar é preciso, viver não é preciso — paráfrase vagabunda! — Mas o que é a história se não se pare? Se não se pare, morre-se em si, morre-se a história. Sônia é o útero conceptível desta história. Cinco anos, cinco anos e nada. O jeito foi recorrer a um pai de santo. Ora, mas não foi por causa da infertilidade! Então não sabes que ela perdia o marido? Para a Clotilde, uma sirigaita, intrusa na história, simples ponta, sem crédito; então a deixemos aqui, morta e enterrada.
Havia o padre como conselheiro matrimonial. Mas não era isso o que Sônia queria. Queria era prender o marido às amarras de seu coração, um feitiço forte, que mandasse a outra para longe, que a deixasse na pele e no osso, que... enfim, que a matasse.
Vê como a história não conhece tempo? E não já enterramos a outra?... Continuemos.
O pai de santo conversou com o Coisa e, ambas as partes estando acordadas, fez-se o pacto. Daí a nove meses nasce a menina. É forte, é bonita, é morena; é a cara do pai.
— É uma menina mulher! Bonita como o diabo! Vai se chamar Janaína — diz, cheio de orgulho, Vivaldo.
Nascida a menina, o pai de santo visita Sônia e lembra-lhe do contrato, da cláusula.
— Ora, mas que cláusula, painho?
— A menina, Sônia, a menina é o preço. Depois pode ter outros filhos, mas esta... esta não lhe pertence, sabe de que falo... é o preço.
— Sacrificar a menina? — pergunte-me, leitor.
— Sacrificar a menina?
Isso mesmo. A menina nasceu de uma conjunção entre Sônia e o Diabo. As vias de transe, ou, se quiseres ser moderno, vias da transa, aconteceram em ritual satânico, onde a mulher, deitada e completamente nua, recebeu o falo espiritual. Ouviram-se os gritos do gozo. Deram-na por louca. O pai de santo e curandeiro a tratou com banhos de folhas e rezas. Dias depois estava boa e prenhe. Podia ter muitos filhos. O casamento estava a salvo. A história pode continuar.
Aqui bem cabe um fim, mas a história é fértil, continuemos.
Que a história também dá lá seus pulinhos, todo o mundo sabe, por isso, pulemos onze anos.
Eta pulo mal dado desgraçado! Não, tudo bem, caímos em tempo e lugar certos. Uma menina que pulava a cancela foi que... Vamos à história.
Que venha Janaína.



terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Olhar mortiço de sedução



Romildo passou e falou com Janaína, na praça. Ela derramou um olhar mortiço de sedução pra cima dele. O besta não percebeu. Com uma visgueira na mão, ele disse que ia pegar um guriantan que tinha visto no pé de capiá, no quintal de dona Carmelita.
   Eu te dou ele de presente pra você, Janaína.
Ela, que já ia lá adiante, virou-se e foi esparramando pelo chão, até alcançar os olhos de Romildo, um olhar grudento. Tão grudento como aquela visgueira que ele tinha na mão. O corpo do moço buliu. O coração disparou. Ele deu uma carreira. No mato esqueceu o passarinho. Escondido numa touceira de bananeiras, invocou o feitiço da alma de Janaína. Arriou o calção, fechou os olhos e mandou sua alma lambuzar-se com a alma daquela diaba. Um fogo subiu-lhe por todo o corpo. Eram as formigas de fogo e as formigas caçarema atiçando fogo no corpo dele. Gozou, aliviou-se. Livrou-se das formigas e foi ver se ainda pegava o guriantan que cantava no pé de capiá, no fundo do quintal de dona Carmelita. Chamou-se de sortista, o bichinho ainda estava lá, e mais bonito, mais colorido, azulado nas costas, o peito amarelo, e trinava forte. Mansinho, pareceu-lhe. Subiu na cerca e trepou numa galha do pé de capiá, sem fazer barulho, sorrateiramente como ele sabia se mover no mato. Pensou em Janaína. Ela ia gostar do presente. Um presente de amor. E o guriantan ia cantar todo dia de manhã cedo e o canto dele ia entrar no ouvidinho dela, no pensamento, e ela ia pensar que era um sonho colorido. Sonhava com Romildo e arriava de novo aquele olhar meloso. Acordaria pensando nele e descobria que o amava. O guriantan, agora pulou para a outra galha. Romildo, sabe-se lá por que diabos, resolveu que ia pegar o pássaro de mão. Contaria a Janaína como foi e ela ia ficar garbosa do feito. Não era gabação não. Romildo tinha mesmo jeito para pegar passarinho. Tinha dias que ia pro mato e voltava com japiranga, sabiá, até sanhaço; os beija-flores chegavam mortos, de badogada; e os sanhaços, estes não sobreviviam em gaiola. Os nicos eram engraçados. Pegava-os todos, passarinhos e outros bichos, no manzuá. Os coitadinhos entravam pelo buraco e não encontravam a saída. Mais um pouco e Romildo botava a mão no guriantan. Bateu um vento. A árvore fez que ia cair. Romildo se segurou. A galha embalançou. O passarinho avoou. Pousou, na ponta de uma galhinha, fina, lá Romildo não ia. “Eu vou”, disse ele. O vento ficou por ali. As outras árvores, quietas ele as deixou. Rondava o pé de capiá. O guriantan abriu as asinhas eufóricas, afinou o bico e cantou forte. Romildo se encantou. Pensou em Janaína. O passarinho, ali, pertinho. Lançou a mão, o passarinho, rápido, avoou. Voou para longe no vazio, assoprado pelo vento que o levou. E Romildo, não achando nada no vazio, desequilibrou-se e de lá do alto seu corpo despencou. Ainda ouviu o badalar dos sinos da igreja de Nossa Senhora das Candeias chamando o povo para a procissão. Ainda ouviu, na queda, o farfalhar agoniado das folhas do pé de capiá. E o último som que ouviu foi o do próprio corpo caindo veloz, cravando-se nas estacas da cerca.
Na igreja, o sino badalava, e não havia cortejo nenhum para a alma de Romildo, que já ia longe, travada, para nunca mais...
No mato um bacurau piou...
***
Trecho de O Pescador de Almas
Foto de Roberto Harrop - Guriatã ou Gaturamo verdadeiro (Euphonia violacea) - retirada do Flickr

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Natureza


       Abriu os olhos com o cantar do galo num terreiro distante. O negrume da noite ainda se escondia sob as folhas das gameleiras e dos cacaueiros. No céu brilhava a estrela d’alva. Na rua um vozeirão de homem convocava para a pescaria.
   Ei Lapinha, acorde, tá na hora.
   Babo, ei, Babo, vambora, rapaz, tá na hora.
No mesmo horário vinha João do barco avisando quem fosse viajar para Camamu que estava na hora de acordar. A maioria já estava com o café tomado e com a bagage pronta. João do barco só chamava uma vez. Chamava e descia para o porto. Muitas vezes o rio estava seco e os viajantes tinham de andar até a boca do rio, na coroa, onde o barco estava ancorado. Se o rio estivesse um pouquinho mais cheio, mas não tão cheio que o barco pudesse entrar ou não suficientemente seco para que os passageiros pudessem seguir a pé, os viajantes tomavam uma canoa emprestada ou então pegavam carona com algum pescador que estivesse saindo e iam até o barco. As mulheres iam acocoradas no fundo da canoa. Os meninos já maiorzinhos equilibravam-se de pé. O remador ia atrás, na popa, também de pé. E fincava o remo na areia do fundo do rio e empurrava, a canoa avançava desequilibrando-se um pouquinho e as mulheres faziam ui, os meninos davam um risinho fazendo pouco do susto que as mulheres levavam. Os maruins atacavam a pele. Os sururus na lama do mangue estalavam. Os aratus e os caranguejos espiavam com seus olhos compridos. E o cheiro do mangue e do mar era tão forte! Era a natureza em todo a sua vitalidade. E o corpo do remador também era forte. E sua pele era da cor da lama do mangue. O remador era uma extensão da água do rio e da lama do mangue. A água do rio era salgada e inundava o ar com seu cheiro forte de maresia. Assim também era o homem, do seu corpo transpirava um suor salgado e o cheiro que saía junto era cheiro de mar, de sal, de lama. O homem fazia parte daquela natureza. E ambos, homem e natureza, conviviam harmonicamente, interpenetrando-se, confundindo-se, fundindo-se um no outro. O homem feito de mar e lama ia na popa, e do seu rosto negro espiavam dois olhos brancos... uma garça piou assustadiça e avoou no céu...
O homem feito de mar e lama apoitou a canoa do lado do barco. Os passageiros, os homens com jeito, as mulheres desajeitadas, transpuseram-se para a embarcação que os levaria a Camamu. O homem da canoa puxa a poita, dá um empurrão no bojo do barco e a canoa se afasta disparada. Já vai lá longe, beirando o mangue, confundindo-se, fundindo-se, sumindo-se... só se vê um céu azul emborcado no mar, e um manguezal verdejante a perder-se de vista...

* * *
João do barco gira a manivela do motor e o barco treme nervoso. O eco seco da máquina bate no mangue e o tá tá tá tá tá ressalta, ressoa, é o atabaque da mata, tá tá tá tá tá.
No espelho trepidante do mar avoa uma garça... lá no profundo das águas, perto do céu azul...

Trecho de O Pescador de Almas

Cântico de Verônica



Na porta da professora Izabel havia uma mesinha enfeitada do lado de fora. Por um momento a procissão parou. Adelina subiu em uma cadeira e, com o sudário com que Verônica enxugou o rosto de Cristo nas mãos, ela entoou um hino em latim.


“O vos omnes,

qui transitis per viam,

attendite et videte,

si est dolor sicut dolor meus”

Era o hino de Verônica. À medida que cantava, ora sungava o pano com as pontas dos dedos, devagar; e ora o abria totalmente, e todos podiam ver o rosto de Cristo estampado em vermelho. Seu Dudu batia a matraca, Adelina descia muito emocionada da cadeira e a procissão continuava.
Agora era a vez de Adelina subir na cadeira e cantar o hino de Verônica na porta de dona Anita. E as palavras lamentosas diziam:

“Ó vós todos
que passais pelo caminho,
 parai e vede
se há dor igual à minha dor.”

Trecho de O Pescador de Almas



Igreja



— Essa igreja, essa mesma, quando foi construída, isso lá pelos idos de mil seiscentos e tanto, foi construída com a frente voltada para o mar, mas, dias depois, o povo ficou abismado, a igreja estava com a frente voltada para o vilarejo. O povo respeitou a vontade da santa, deixou a igreja com a frente voltada para o vilarejo, essa mesma, lá pelos idos de mil seiscentos e tanto...

Trecho de O Pescador de Almas

Os passos do medo: uma herança cultural



— Bom Jesus dos Passos mete medo nas crianças com aqueles cabelos compridos e com aquele vestido lilás e com aquela posição acorcundada. Minha avó tinha medo, minha mãe tinha medo, eu tive medo, meu filho mais novo tem medo, acho até que minha bisavó e também a mãe dela, as duas tinham medo. É um medo antigo.

Trecho de O Pescador de Almas