Rio Barcelos

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domingo, 10 de julho de 2011

A olho-de-boi


Levei surra de meu pai por causa de meu irmão. A dor das cinturadas esvaiu-se no tempo; ficou o exemplo e o amor. Isto se deu quando éramos crianças, na época em que até a mentira, engenho de todos nós, elaborou-se natural e inocente, mas já mentira, completa em seus elementos.

Minha primeira mentira foi gerada de manhã, quando eu, meu irmão mais outros meninos jogávamos gude no meio da rua. Rua de terra, grama dos lados, própria à brincadeira.

Meu irmão batia-se no jogo com Moa, seu arqui-inimigo em todos os sentidos. Ganhasse quem ganhasse, a vitória seria saboreada com requintes supremos. Perdesse quem perdesse, acabava-se o sentido da vida. Vencer, vencer, era só o que perseguiam. Para tanto, montavam estratégias, ora cheias de valentias, em outros momentos, cautelosas, a bolinha que era atirada um pouco mais distante, a bolinha que se camuflava sob um montinho de grama, uma folha que a encobria; eram muitas as barricadas levantadas.

Eles estavam nesse embate, quando surgiu meu pai no alto da rua. Meu irmão estava prestes a ganhar o saquinho de gudes de Moa. Avistou meu pai longe, segurou a respiração, controlou-se.

- Olhe quem vem lá em cima, disse Moa, com o intuito de fazer meu irmão fugir da jogada, abandonar o jogo, desmoralizar-se perante todos.

Mas o quê?! Meu irmão ser chamado de corrão, de galinha choca! Nada. Calmamente ele pôs a língua fora da boca, virada para um dos lados, mordeu-a, ajeitou a gude entre o polegar e o indicador e lançou-a. Certeira.

- Vamos mais uma, provocou Moa.

- Aposto todas as minhas gudes contra a sua olho-de-boi, respondeu meu irmão.

- Só se for aqui e agora, respondeu Moa.

- Agora, sim; mas não aqui, vamos ao campinho.

Moa queria recuperar as gudes e, principalmente, a honra. E sua olho de boi era-lhe muito cara. A olho de boi de Moa era linda. Eu queria tanto ganhar uma olho de boi.

- Então vamos logo. E todos rumaram para o campinho. Mas antes meu irmão, que já vira meu pai descendo a rua, talvez impensadamente, coitado, pediu-me que ficasse ali e o aguardasse, e, caso perguntasse se eu o havia visto, respondesse que não, que ele não estava ali, jogando com os outros meninos.

Meu pai não suportava jogo. Logo iria perceber que suportava muito menos a mentira. Claro que houve uma prévia preparando o terreno para essa Senhora. Olhava a casa velha à minha frente. Eu, que nunca percebera seus detalhes já em decomposição, achei-lhe até certa poesia. O olhar triste dela, de senhora cansada, seu corpinho, que do barro foi gerada, logo ao barro retornaria. Que vida, meu Deus! Que vida!

- Cadê seu irmão? Foi logo perguntando meu pai.

Que susto! Foi um susto fingido, mas confesso que o senti de verdade.

- Ele não estava aqui não, pai, respondi-lhe, calmo. Ainda perguntei-lhe do bezerro Crioulo, cuja mãe morrera durante o parto. O olho dele é bem azul, não é, pai? Até parece uma gude olho-de-... Mas o senhor não pode dar mandioca a ele, pois é ainda muito novinho, não é pai?

- Seu irmão não estava aqui? perguntou-me de novo, dando-me última chance de salvação.

- Não, pai. Posso ajudar o senhor na roça, pai? emendei logo, na tentativa de despistá-lo do assunto em pauta.

Pegou-me rápido pelo braço, segurou-me firme, e tirou o cinto.

- Mentiroso! Toma, toma, para aprender a não mentir mais.

Deu-me pedagógicas cinturadas e, calmamente retomando o curso da vida, soltou-me, recolocou o cinturão no lugar, e, assobiando, como era do seu hábito, desceu o resto da rua, rumo à roça.

Chorando e com o coração aos pulos, não tendo em quem descontar as cinturadas recebidas, avistei uma boa pedra no chão, peguei-a e a atirei na casinha simpática que estava morrendo.

Ora, tinha que descarregar meu ódio em alguém! Hoje lhe encobre a cova belo prédio.

Ao chegar em casa, já lá estava meu irmão.

- Tomei uma sura por sua causa. Menti para pai, dizendo que você não estava lá na rua jogando gude.

Meu irmão calmamente levou a mão ao bolso e retirou a gude olho-de-boi que ganhara de Moa. Colocou-a entre mim e ele, segurando-a entre os dedos, e me disse:

- Tome, é sua; mas não é um prêmio pela mentira.

7 comentários:

  1. Como vc sabe contar uma história, Flamarion! Envolvente e, como se diante de um filme, vemos a cena, a surra, o irmão e até a bola de gude olho-de-boi. Deliciosa a narrativa!

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  2. Vim ak para que vc contribua a visita, ha to lendo seu livro ''O Rato do Capitão'', linguagem bem informal e de fácil compreensão.Bjs!

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  3. É difícil comentar quando se fica aflito. Sinto-me aflita, com uma sensação de quem levou mais do que uma surra por causa de um irmão.
    Incrível conto.
    Beijoss

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  4. Obrigado, madrinha.
    Que bom que está lendo O rato, Emily. Obrigado.
    Bom receber sua visita Bípede. Estou me tornando leitor assíduo do seu Bípede Falante. Vou comentar mais seus escritos, que são de sensibilidade incrível. Abraço.

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  5. muito bom, Flamarion! Singela a cumplicidade dos irmãos.

    Elaine Lima da Silva

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  6. Estou procurando textos seus (mais expandidos) pra ler. Sua escrita tem ritmo e leveza e este post me levou para outros tempos. Eu já tive uma lata de 18 litros plena de "bilocas", como as chamávamos em Minas no tempo do Getúlio Vargas.
    Parabéns, grande abraço.
    Gilson.

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  7. Como me vi ali. Quantas surras levei de meu pai. Mas o amor ficou. Belíssimo conto.

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