Rio Barcelos

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domingo, 16 de maio de 2010

A arma de cada um


– Eu andava solteiro, aí conheci a Diva, mulher bonita, loura, os homens endoideciam ao vê-la passar pelas ruas de Cruz das Almas. Mas Diva era uma dessas mulheres, como se diz, perdidas. Ganhava a vida assim, indo com um e com outro. Contudo, não se gastava, conservava o charme, a altivez, a postura. Sabe aquela atriz do cinema americano, a Marilyn Monroe? A Diva parecia-se com ela. Mulher bonita!
– Quem? A Marilyn?
– Também, também, mas a Diva... ah, bonita igual a ela, nunca vi.
– E o que aconteceu com a Diva?
– Tirei-a da rua. Levei-a para morar comigo.
– Casou-se com uma mulher da vida?!
– Casei-me. Ficamos juntos um ano e seis meses. Pensei que a Diva endireitava, mas... sei lá... talvez o destino de certas mulheres seja levar essa vida mesmo. A Diva me traiu com o Nestor. Peguei-os na minha cama. Dupla infeliz.
– E você, o que fez? Matou-os?
– Nada! Ia lá me sujar com dois perdidos!
– E então?
– “Vistam-se,” disse-lhes, firme. “Vamos, rapaz, não tenha medo. Não vou te matar.” O cabra ficou assustado, tremia igual vara verde. “Venha tomar café, você deve...”
– Convidou-o para tomar café?!
– Foi o que eu disse.
– “Venha tomar café. Você deve estar muito cansado, precisa alimentar-se. Venha, vamos à mesa. Você também, Diva.”
– Foram à mesa comigo. Botei-os na minha frente. Não se pode confiar, gente que trai é um perigo. Botei-os na minha frente. Apontava o revólver para os dois.
– Revólver?! Você tinha um revólver? Por que não os matou?
– Ah, menino, você ainda é muito novo, não sabe onde reside a sabedoria do homem.
– Eu não sabia que existia a sabedoria do... do...
– Vai, diz. Acostume-se logo com essa palavra. Todo homem tem de estar preparado.
– Eu, hein. Bem, o que fez com os dois?
– Nada.
– Nada?! Você não fez nada?
– Não. Tomaram café. Disse a ele, apenas: “Olhe, rapaz, a Diva vai com você, ela vai ser a sua mulher, e ai de você se fizer algum mal a ela.” Falei isso só para meter medo nele, a Diva era uma pobre coitada. “Levantem-se” disse-lhes. “Tome”, e passei meu revólver a ele.
– Endoideceu!
– Nada. Eu sabia o que fazia. Disse-lhe: “Tome, leve este revólver, você pode precisar. Tem dinheiro para o transporte? Não? Então tome aqui dez contos.” E se foram.
– E aí?
– Aí eu continuei levando minha vida. Até que, um dia, quando eu passava em frente à cadeia de Santo Antônio, alguém chama meu nome.
– “Seu Manuel Jorge, seu Manuel Jorge, lembra-se de mim? O senhor tem um cigarro para me dar?”
– Era o Nestor. Espiava a rua através de uma grade de ferro, retangular e minúscula. Lá estava Nestor, preso. Tirei um maço de Hollywood do bolso, aproximei-me da grade e passei-lhe o cigarro. Perguntei:
– “O que lhe aconteceu, Nestor?”
– “A Diva, seu Manuel, a infeliz fez comigo o que fez com o senhor. Peguei-a na cama com outro; matei os dois com aquele revólver que o senhor me deu. Estou vingado. Estamos vingados.”
– “É, Nestor, estamos vingados”, disse-lhe. E saí andando, livremente.

terça-feira, 11 de maio de 2010

A Bomba


Raimundo Reis, pescador natural de Barcelos do Sul, tinha 34 anos, dois filhos que moravam com a mãe, um pai velho, Sr. Pissica, e, principalmente, tinha a mania de soltar bomba. Eu disse bomba, não bombinha de São João. Bomba, bombona de matar peixe.
Todos sabiam ser crime esse ato, mas nem por isso deixavam de executá-lo. Dentre os pescadores que se destacavam, posso citar Sr. Arivaldo, João do Velho, Senor, que tinha fama de bom mergulhador, Zé do Campo, e Manuel de Fulô. Este, uma vez, foi escarrerado manguezal adentro pelos agentes da Capita­nia dos Portos. Não se emendou. A pesca com bomba era excitante e fácil. E lá estava Manuel de Fulô de novo catando os peixes da superfície. Olhava em to­das as direções para ver se vinha alguém da Marinha e, bum, mergulhava. Lá se ia ele buscar os peixes que não boiavam.
***
Eu tinha nove anos e era doido por refrigerante. Claro, era tão raro tomar que até mesmo quente sorvia-o de bom gosto, e lenta­ment­e, para prolongar o prazer. Ali era raro coisas ge­ladas. Eis porque: primeiro, os moradores não tinham condições de comprar geladeira; segundo, a eletricidade ligava-se às seis horas e desligava-se às dez. Isto é mentira, se bem me recordo desligava-se sempre antes. Uma vez, somente uma vez, exceto nas festas de ano, a luz ficou acesa até de manhãzinha. E isto foi quando seu Caju mor­reu. Seu Caju era o Juiz de Paz; terceiro, pelo já exposto acima, percebe-se que a eletricidade era ge­rada por um motor que alimentava, mal, as trezentas e poucas lâm­padas, contando as dos postes (naquele tempo, ainda de madeira) e as das casas. Assim, se se ligasse uma geladeira, a luz baixava na hora. Mas, sem grande esforço de memória, posso dizer quem tinha geladeira naquele tempo em Barcelos do Sul: seu Caju, o Juiz de Paz, que já morreu nessa história, a sua era a gás e funcionava; meu pai, o Sr. Jocelyn Policarpo da Silva, apelidado Celi, a sua era à eletricidade, e não funcionava; e seu Vavá, dono de um armazém colado à venda de meu pai, na Praça da Matriz, em frente à Igreja. A sua era a gás e trabalhava bem.
Era na Praça da Matriz que eu estava. Tinha algumas moedas e ia tomar um refrige­rante quando, lá em cima, no fim da rua, descendo para a praça, al­gumas pessoas aglomeradas em torno de um homem traziam-no nos braços, em cadeirinha.
Chegaram mais perto.
– Meu Deus! O que terá sido isso? perguntei-me.
– Foi a bomba, alguém respondeu.
– O quê!? Bomba!?
– Onde foi? Como foi? Por que foi? Ele não soltou logo, foi?
Ali estava Raimundo Reis, sentado, parara um pouco de tremer. Eu via com olhos curiosos de menino. Coto­cos, sim, o que eram seus braços agora, só cotocos. Os nervos davam a impressão de que iam pingar, escorrer. No resto do corpo, muitas escoriações. O olho direito ficaria, como ficou, seria­mente danificado, mas os cotocos, meu Deus, jamais esquecerei. Por fim levaram Raimundo Reis para Camamu. De lá ele foi a Salvador. E eu fiquei ali, abobado, repetindo aquele quadro horrível: um ho­mem sentado, olhos esbugalhados e os cotocos com seus nervos pingando. Argh! Foi demais para mim, buliu-me todo por dentro. Mas, o que fazer? Quem procura acha. E, decidido, entrei no armazém de seu Vavá e pedi:
– Seu Vavá, me dê uma gasosa.
Ao que ele prontamente me atendeu. E, já esquecido de tudo, de Raimundo e do mundo, sorvia-a de bom gosto, e lentamente, só para prolongar o prazer.
Raimundo Reis, ironicamente, passou a ser visto por todos do lugar como homem de sorte, pois conseguiu se aposentar por invalidez. Hoje vive feliz com a nova esposa e com o “sigiloso” negócio de explosivos.
Foto "O Poder da Pesca", de joao bambu, retirada do Flickr.

sábado, 8 de maio de 2010

Maria


Para Gerana Damulakis

“Se a alma e o coração sujos estão,
dê ao corpo água e sabão.
Se o lado de fora limpo está,
no lado de dentro fica a impressão.”
Zé de Noite, o cego.

Remontam o caminho de volta os talhos da tiririca, que iam, de um e outro lados, penitenciando-me docemente. Também dos matos, as suas galhas, largadas num debruço, e o sol, no desmaio da tarde, caíam sobre mim.
Ia ao Apicum, onde me aguardava Maria.
Decerto por estas trilhas imaginais sons: os pés chapechapeando a água e a lama; sururus em suas cantigas estaladas; piados longe; chiados; aqui, mais perto, neste canto da memória, o desejo a sofregar: Maria antecipada, Maria distante, Maria nunca mais.
“De pirraça”, disse ela bem à frente, no caminhar da história. “De pirraça e por pura maldade me manda a mãe lavar o sujo da roupa.”
“Maria!”, chamei, a que só olhasse para trás.
Virou-se. Viu-me e sorriu-se toda. Dengosa. Porém, o tempo também aí já é outro, mais tarde, depois de tanto antes nos termos tentado na ignorância sabida do caso. Foi o acaso que nos levou, outras desvariadas vezes, pelas mesmas várzeas do caminho.
No Apicum, Maria acocorada. Da bacia as roupas ia tirando. Os pés n’água. Abeirado a ela, puxei conversa, pois Maria, agora, tão calada, aguava a roupa, concentrada.
Puxei um fio:
“E é de maldade que Dona Esterzinha te manda lavar essa roupa, e sempre a esta hora alta, Maria?”
Respondeu, sem dizer palavra, que sim. E esfregava o vestido com sabão e ódio. Porém dele e dela a nódoa não se soltava.
“Tanta raiva tenho dela!”
“Tem raiva dela não, Maria. É tua mãe.”
“Antes-de-ontem me mandou cortar uma gamela de maturi... Olha só o magoado das mãos.”
“Maciazinha”, disse mentiroso, tocando de leve os talhos da mão.
Maria se recolheu diante do afago, como se fosse moça prometida transgredindo contrato.
“O pai me fez um agrado: me deu um corte de pano. Disse:”
‘É para fazer um vestido para a festa de ano; Nossa Senhora das Candeias merece.’
“O pai é bom. Ele me deu a fazenda e saiu para a pescaria. A mãe, afastada, na fonte, quando voltou e viu o tecido aberto na cama, disse:”
‘Tem dois vestidos do ano passado, Maria.’
‘Mas são desde o ano retrasado, minha mãe; tão ruços’, “disse suplicante.”
‘Este é meu, Maria, só meu’, “e saía feita dona do corte que me dera o pai.”
‘Conto pro pai’, “afrontei”
“A mãe virou-se, já com a bofetada guardada na mão. Chamou-me de atrevida. Juntos, ao pai se faz doce. Mas a mãe tem um fel no coração, amorzinho... Desde então me castiga...”
Maria se lavava no enxaguar da roupa. E esta foi a última vez que a vi animada. Deu-me seu amor por último e estas palavras, que nunca se me saíram:
“Quero morrer... quero morrer...”
Pensei morria por mim, ensandecida pelo fogo do nosso amor. Qual nada! Intenção escrita no pensamento, arma engatilhada.
E foi, que no outro dia, no mesmo marcado encontro, lá fui eu fazer companhia a Maria. Porém Maria não havia mais. Nem pios nem chios. Tudo silencioso, como se aguarda um momento a hora de um outro ver.
“Onde Maria? Terá ela lavado toda a roupa suja e se foi?” intriguei-me.
Mais adiante, num passado marcado, mais lá no fundo do Apicum, onde eram as águas mais profundas e menos confiáveis, eu a vi.
“Maria!”

Fazia-se tarde. O escuro descendo do céu assombrava tudo. Por certo eu não via direito. O corpo dela, assim meio de viés, preso pelos cabelos nas galhas, abandonado no mangue, como se lhe puxasse pelos cabelos a mãe, num último castigo.
“O mal se corta é pela raiz”, diziam os pais duros de antigamente.
Maria ficou em mim, como fica na boca o travo de fruta devez. E nunca me saiu o gosto dela, este grudado na memória e na pele, com toda sua natureza, toda ela no meu eu, este travo que não me sai. Maria.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

A viagem de Adelice


Adelice de Carlinho do Gravatá foi outra. Ficou doida de repente.
Um dia ela vinha com o pai numa canoa. Iam pegar o barco de Tião, que ia para Camamu. O barco parou e a canoa veio se encostando.
— Bom dia, seu Tião.
— Bom dia, Carlinho. Bom-dia, essa menina.
Mas a menina não respondeu. O pai reclamou, chateado. Não dava luxo mas educação dava sim senhor.
— Adelice, minha filha, dê bom dia a seu Tião.
— ...
O pai ficou sem graça. Como podia ser isto? Então quer dizer que toda a educação resultou inútil? A menina era orientada em casa a ser educada, principalmente na presença de estranhos. Que disesse bom dia, boa tarde, como vai o senhor, a senhora, por favor, pois não. E agora, ali, logo na presença de seu Tião, Adelice resolveu fazer feio. E como não? Claro que vão comentar:
— A filha de Carlinho, ah, mas que moça mal educada!
E vão pensar logo: o pai não a educa.
— Adelice, minha filha, a senhora não me ouviu? Vamos, dê bom dia a seu Tião.
A menina nem ouvia mais nada. Sentou-se na beira da canoa e olhou para um canto, para outro, para o nada. E de repente começou a rir. Mas ria bobamente, um riso sem sentido. Um riso que aos poucos foi se transformando em choro.
O pai viu aquilo e não se aguentou.
— Minha filha, minha filhinha, o que aconteceu?
O homem era um forte, é certo, mas ele preferia um soco, ou a perda de um braço, uma perna ou outro órgão qualquer, até que fosse a sua própria vida, a ver a filha naquele estado de inércia. Carlinho era um forte, mas depois desse dia Carlinho virou ruína de homem. A filha enlouquecera, constataram todos.
— Vamos, Carlinho, não fique assim que não há de ser nada. Logo passa.
— Não! Não! Com a mãe, minha finada esposa, que Deus a tenha, foi a mesma coisa.
Tião lembrou-se de uns tantos casos de loucura, de trabalho feito, de lua ruim, de vento carregado, mas não falou nada, precisava era seguir viagem.
— Carlinho, pegue sua filha e volte para casa.
O homem apoiou as mãos no bojo do barco de Tião e, empurrando-o, fez com que a canoa se afastasse.
Carlinho sabia que aquela era uma viagem que não tinha volta. O que não podia era embarcar nela. O homem tinha que ter este prumo.