Rio Barcelos

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quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Porquinho


Anjinho despertou com o rinchado de porco. Uma correria no lado de fora da casa, no fundo do quintal. Decerto o pai perseguia um dos porcos que fugira do chiqueiro. Era bom que ele se levantasse logo da cama e fosse ver o que estava acontecendo.
- Mas é tão cedo! A réstia de sol ainda nem entrou pela telha de vidro. Tudo escuro. Um frio.
Cedo, mas, como o sono fora embora de vez, tomou coragem e se levantou.
A mãe estava na cozinha, sentada num banquinho, escamando uns peixes miúdos. Ele parou no batente que levava do corredor à cozinha e ficou observando a mãe, sem ser visto. Achou engraçada a calma dela. Pegava um peixinho com leveza, escamava-o, cortava a cabeça fora, tirava as barbatanas e o rabo, dava um corte de alto a baixo na barriga, abria-o e tirava as tripas, e, com delicadeza punha-o no cocho com água. Pegava outro peixe e repetia tudo, igualzinho. E os peixes eram muitos. Tinha que os tratar e salgá-los, para depois colocá-los no sol. Assim os peixes ficavam conservados e poderiam ser comidos mais tarde.
- Bença mãe.
- Deus lhe dê sorte.
A mãe se levantou, lavou as mãos em uma gamela e foi até o fogão de lenha. O fogo já estava apagado. A mãe providenciou umas felpas e o reacendeu. O fogão tinha uma chapa de ferro onde se abriam duas bocas. Em uma das bocas estava a chaleira com café, na outra, uma panela com água. Logo a mãe abanava o fogo. Pouco depois as achas ardiam.
- Tome aqui a água morna. Lave o rosto e escove os dentes.
O menino subiu no pilão encostado à janela do quintal e começou a lavar a cara e a escovar os dentes, quando viu, no quintal, certa movimentação. Ficou curioso e disse à mãe que ia ali e voltava já.
- Ali, onde, mocinho?
- Pai tá ali no quintal. Vou ajudar ele.
- Venha tomar seu café.
- Mais logo eu venho.
Desceu a escada de pedras correndo e logo estava lá.
Anjinho gostava de ajudar o pai. Queria tanto que o pai gostasse dele. Mas o homem era duro. Um tipo difícil que não ouvia ninguém. O menino ia a casa pegar uma bacia que o pai pedia. Ia pegar uma faca que o pai esquecia. Ia levar um recado. Ia dizer à mãe que o pai disse para fazer isso e aquilo. E o diabo do traste nem se comovia. Fazer o que, senhor?
Logo o menino voltou correndo.
- Pai pediu a peixeira, mãe.
- Qual das duas.
- A grandona que tem bainha.
Anjinho fazia tudo correndo. Talvez tivesse medo de que o pai o chamasse de lerdo e lhe desse um carão na frente dos outros.
- Agora vá buscar uns baldes de água e encha este caldeirão aqui.
Ele ia correndo e voltava rápido. Logo o grande vasilhame estava cheio.
- O fogo? Vai pegar fogo, rápido. Parece que é lerdo!
Ia correndo e retornava voando.
- Aqui o fosco, pai.
- O machado. Cadê o machado que você não trouxe? Vai, vai buscar, rápido!
E lá ia Anjinho fazer tudo o que o pai mandava.
De repente, o menino levou um susto. Ele viu que Porquinho, seu Porquinho de estimação, estava preso pelo pescoço no tronco de uma bananeira nanica.
Ele aproximou-se mais do pai e o cutucou, morrendo de medo que o pai reclamasse.
- Pai, pai, Porquinho tá preso.
- Vai pra casa, menino!
O pai não sabia que aquele era o Porquinho do menino. O pai não sabia. Nem sabia que o nome dele era Porquinho. Talvez nem soubesse o nome do menino.
- Faça isso, menino! Vai buscar isso, menino! Pare com isso, menino! Quer apanhar, menino?
O pai olhou o menino e o mandou ir para casa.
Anjinho era um menino obediente. Obediente até demais. Diabo de menino obediente! Para que tanta obediência? Foi andando para casa, triste. Nessa hora, como se ouvisse um sopro de voz distante, ele parou. Olhou na direção onde seu pai e seu Porquinho estavam, e viu. Viu mas ficou parado, sem ação. Se não fosse a providência, que lhe colocou uma formiga de fogo sob o pé descalço, e esta não o ferroasse de jeito, até hoje estaria lá, parado. Rápido, pulou atrás de uma touceira de bananeira.
Porquinho, amarrado num tronco, imóvel. O pai levantou o machado e desceu-o com toda a fúria sobre a cabeça do bichinho. Bateu com as costas do machado bem na cabeça. Imediatamente, em meio à tontice do animal, o pai, já com a peixeira em punho, enterrou-a toda na garganta. Segurou-a um pouco enfiada, torceu-a e logo a retirou. Anjinho viu o sangue do seu amiguinho jorrar dentro da bacia.
- Pra não esperdiçar o sangue do bicho, que é bom.
Tudo parou, o menino não ouviu mais nada. Apenas sentiu no seu pesadelo a grande impotência. Porquinho não se debatia mais. Rápido o pai o pôs no grande caldeirão de água escaldante.
O homem gritou para a mulher:
- Pronto. Agora é só pelar o bicho. Cortar o bicho. Arrancar as vísceras do bicho. Separar as partes do bicho. E comer a carne boa do bicho.
Anjinho, caído no chão, entre as folhas secas de bananeira, não sentiu as picadas das formigas de fogo, que já avançavam, tomando todo o seu corpo. Ele apenas soluçava baixinho, e dizia o nome do seu amigo:
- Porquinho! Meu Porquinho!

Foto de Baby Diana, retirada do Flickr.

6 comentários:

  1. COMO SEMPRE, EXCELENTE.
    Narrativa perfeita, plena de emoção.

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  2. Me envolvo que chego a prender a respiração!entrei no ambiente! tadinho do menino...Como os adultos são indiferentes à realidade infantil!Tadinho do porquinho Porquinho!

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  3. Olá eu gostaria de lhe pedir permissão para montar um monólogo com este conto.
    Seria sem fins lucrativos, eu entraria em festivais e te mandaria as publicações e possíveis premiações.
    Por favor entre em contato: tulio_crepaldi@hotmail.com

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  4. Obrigada pelo lindo conto.
    Gostei especialmente dessa cena´-paisagem ainda bem nem tão perdida no tempo assim...
    Desejo tudo de bom no Natal e no ano novo, para vc e sua família, e princiapalmente que vc continue (re) criando contos e me mandando notícias....
    Um grande abraço
    América

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  5. Oiiii,
    Você escreve muito bem, cria todo o cenárionos envolve-nos em um ambiente todo propício, para gostar de cada personagem e sentir-nos dentro da história.
    Abraços...
    Elaine.

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  6. Adorei a sua narrativa! Parabéns! Fiquei vendo cada imagem sugerida, envolvida, viajando nas palavras do lugar (esse território sul da bahia que também é meu). As frases tão nossas, tão possíveis! Sucesso!

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