Rio Barcelos

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sábado, 27 de março de 2010

O CORPO


Descontinuariam a festa por causa da morte de Romildo? Tomara vivalma não se lhe dê conta. Achado, decerto não haverá festividade. É costume do povo, que é respeitoso, não demonstrar alegria quando parte um irmão. É uma cumplicidade de dor, como quando o amigo se vai, deixando saudade colada à lembrança. Quem não se lembra de Seu Aniceto de dona Carmélia? Expirou no Jardim das Flores, mas lá, sem campo-santo, veio às carreiras ser enterrado em Barcelos. No dia do sepultamento, uma bebedeira no bar de Preto. A radiola alta. Mas, pronto, bastou o povo avistar o cortejo lá em cima, no Mirante, ligeiro o som silenciou. Quem estava de chapéu, sacou-o fora. Todos persignaram-se e fizeram o sinal-da-cruz em reverência. Um cujo abriu caminho para o dito:

“Vá com Deus, meu irmão.”

E logo todos o seguiram:

“Vá com Deus.”

Indo.

O sino principiou a bater na igreja de Nossa Senhora das Candeias. Anunciava a morte e convocava o povo para o cortejo. Quem ouvisse a trágica canção, logo fazia a leitura:

“Vixe, meu Deus, morreu um’alma, e não miúda, de anjo; pelo ritmado do badalo... o alteado... gente grande.”

Porém, o povo queria a dança, a cachaça, a esfregação, a safadeza, a putaria. Trezentos e sessenta e cinco dias na folhinha subtraídos, um a um, do levantar ao cair do sol, os dias compridos. Tão aguardada festa! Pois bem. Romildo que ficasse lá. Quem mandou subir em árvore? Pegar passarinho a mão? Eis o que se deu: despencou lá de cima. E cá embaixo, nas estacas, o corpo cravado. Alguém, sem coração, dirá depois:

“Quem lhe tem pena? Estragar a festa... Vá ser azarado assim no inferno!”

Olhe o diabo: dona Branca, mulher de Seu Miguel de dona Rola, havia-o de ver. Um mal estar a levou aos matos, arrancar folhinhas de chá. Bateu os olhos no corpo de Romildo. Diria, não diria, apodreça até amanhã! Nem isso pensou. Deu a gritar. Gritos de morte. Diferenciados das batidas no anúncio de alguém já morto. Aí o momento é desigual. Diferente do sino que já bate consciencioso da morte. O grito de dona Branca declarava o exato momento do antecipado confronto. Pois quem morre, mata muitas vezes, até aquietar-se sob o terreno da memória, o defunto. É uma cadeia que se sucede. Primeiro, o morto original, e, no justo instante, dona Branca de Seu Miguel de dona Rola, mais logo todo o mundo a morrer mais um bocadinho. Todos com o seu quinhão da Dona Fatídica. Até o morto, o de verdade, ser enterrado de vez. E, ainda assim, mesmo depois de amanhã e mais, mesmo sob o chão lacrado, às vezes, na lembrança vem, como alva garça, avoada a alma matar um pouco quem vive. E como apossa-se-lhe suave no pouso! Mas cravam-se-lhe as unhas na alma, irmão. A gente chora que doem os ossos. É costume da gente se lembrar, gostar de se matar, avivando o sofrer.

Por esse então, a gente embriaga-se toda. Um motivo tem: se há dor, é preciso esquecer. E, na bebedeira, os motivos se confundem, os objetivos tornam-se desvirtuados, os braços se agarram a tudo, pois a tontice é muita, e as pernas, tantas embaralhadas, assim vão-se a valsar essa dança doida de bêbado.

A gente concorda em fechar os olhos diante do morto. Gente, pois não somente dona Branca de Seu Miguel de dona Rola o viu, assim como Zeca da Biriba, Manuel do Brejo, o rapaz que se enamora de Dadinha, e quem mais, só Deus sabe! Que mundo, este!... Bem, o fato é que, resolvido, sem encontro marcado, ficou tudo conforme: ninguém viu o corpo de Romildo enfiado nas estacas. Foi tudo assim como se concluíssem: os mortos, aos mortos; a gente vai à festa.

10 comentários:

  1. Bem disse Tchekov quando mostrava (assim como vc faz) que quem escreve sobre sua terra, escreve para o universo. É um conto que pulsa, vivo (tratando da morte como empecilho, mais vivo ainda). Simplesmente tiro o chapéu.

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  2. Finalmente, rendido pelo cansaço moribumdo e, ao mesmo tempo extasiado de prazer, o escritor se rende e resolve criar o blog.
    Ainda bem!
    Belo conto. Será um prazer segui-lo.

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  3. Adorei, Flamarion.
    Não sei por que, sou da capital, sempre vivi em capitais, no entanto, esses contos de gente simplória com cheiro de mato e linguagem matuta me agradam demais e a sua narrativa segura o leitor de verdade. Muito bom mesmo. Abração.
    Gláucia

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  4. Parabéns
    Muito bom este conto. Show de bola
    Abraço
    Genisson

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  5. Ei, Flamarion...

    Como vai vc?? Gostei da surpresa , seus contos num blog onde vc divulga contos e fotos de um lugar paradisíaco!! Obrigada.

    Gostei muito dos contos, mas não vou comentá-los agora. Farei isso depois. Mas gostei.

    Abraço e muito boa sorte!

    Mary J

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  6. Muito interessante essa frase:
    "Pois quem morre, mata muitas vezes, até aquietar-se sob o terreno da memória, o defunto."
    Melhor ainda a culmeeira:
    "Foi tudo assim como se concluíssem: os mortos, aos mortos; a gente vai à festa."!
    Como sempre, sua escrita nos leva para mundos possíveis e impossíveis, sua recriação remete quem já viveu no interior a uma lembrança saudosista, gostosa mesmo!

    Mais uma vez, parabéns!

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  7. Seja bem vindo ao blog Aleilton Fonseca.

    Abraços..

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  8. Putz! Maravilhoso esse conto!

    Estou contente demais por vc ter me adicionado. Obrigada!
    Voltarei sempre.
    Martha

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  9. Putz!Maravilhoso esse conto.

    Fiquei feliz demais por vc ter me adicionado.
    Obrigada!
    Voltarei sempre.
    Martha

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  10. Oi, Flamarion, feliz estou por você criar, finalmente, o blogue. Assim poderemos ter a felicidade de ler seus contos. Esse então fala a minha língua, a minha terra, a minha alma. Grande abraço. E parabéns.

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