Rio Barcelos

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sábado, 12 de março de 2011

O pescador de almas

Gerana Damulakis

O pescador de almas é uma novela: redonda, bem amarrada, que conta a história de um pacto. Ela começa com uma introdução, “A propósito de uma história”, quando o autor orienta o leitor a respeito do que irá narrar, situando o episódio, falando com quem está lendo, enfim, iludindo, jogando suas páginas no universo da ficção, para, então, dar lugar a ela: “Que venha Janaína”.
A diafaneidade do narrador-personagem é proporcional à opacidade do personagem-narrador, que se insinua, diz ter sido criança nos tempos do narrado. Tal particularidade resulta em momentos saborosos e frequentes no início da novela, quando o autor interrompe o tecido ficcional para desculpar-se ou explicar-se, sem deixar de ser o narrador realista, que deve se abster de sentenciar ações e personagens.
Nota-se que o personagem criado pelo escritor para narrar, quase nem se constitui como personagem, apenas serve para perscrutar a proveniência das causas, rechear hiatos da trama. A condição de quase-personagem tem reprodução nesta espécie de narrador, que parece não desejar a onisciência, mas também não conseguiria contar tudo que precisa, sendo um censor parcial. Situação interessante e, de novo, criadora de mais ilusão.
Se tudo parece invenção — “Memória é invenção”, já bem disse José Saramago —, é uma mentira no molde das narrativas sublimes e excelsas, pois que esta narrativa tem uma percepção muito verossímil, calcada em fato, porque a verdade, para os que povoam a novela, se conclui sem dúvidas. Sim, Janaína é fruto de um pacto que será cobrado em algum momento, mas antes ela viverá esta história, ela terá sua primeira experiência sexual, detonadora de embates na frágil alma da menina que representará a mãe imaculada de Jesus.
O que ocorre em qualquer arte, ocorre na arte literária: trata-se da formação do homem artista, a qual escolta e escora o incremento estético da arte em questão. É, pois, sua percepção e vivência da “comédia humana, grotesca e sublime”, que fornece a orquestração temática para a obra madura. Por exemplo, neste O pescador de almas, as cenas em torno de Janaína compõem o cenário e a própria história, muitas vezes com toques especiais de humor, tais como o lugar onde as mulheres se banham, quando é preciso perguntar de antemão quem está ali, se homem, ou mulher.
Não faltam surpresas, as descrições são muito benfeitas e os diálogos chamam a atenção. Alguma cena atinge razoável voltagem lírica, apesar de não haver tendência poética neste autor. Impressionante é sua pratica da veia descritiva — vale atentar para a descrição do Bebe-Água. Mas, há também uma notável argúcia na caracterização do drama humano, o contato com a dor, com a luta pela sobrevivência do pescador e com a morte, aprofundados pela percepção. Flamarion Silva tem o dom de lançar os personagens aos abismos da alma, desde então sua paisagem de escolha para o desenvolvimento do melhor de sua ficção.
Voz ficcional possante, de corte realista e viés fantástico, pelo menos para os jamais adentraram certas crenças, para olhos estrangeiros. Voz que vem da experiência espessa da vida, particularizada e refletida, compondo o perfil do escritor.
O primeiro livro afirmou o escritor, o segundo livro de Flamarion Silva confirma o potencial do autor de O rato do capitão.