Rio Barcelos

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quinta-feira, 14 de outubro de 2010

O bêbado e a cruz


Os homens se reuniam no passeio da Igreja de Nossa Senhora das Candeias, para conversar. Conversa trivial e confusa. Mas o assunto parecia já bem definido: Jonzinho, o bêbado, tinha de ir ao cemitério e trazer uma cruz.
– Vai, então vai, quero ver se é homem mesmo, provocou Zé Galo.
– Vou sim. Quer ver eu ir agora? Quer apostar?
– Se você for ao cemitério e trouxer a cruz que está fincada na cova do finado José Barcelos, ganha pinga. Mas, olhe lá hein, traz mesmo, porque se vier de mãos vazias, leva cascudo.
– Um copo cheinho de Pitu? – Jonzinho mediu a cláusula.
– Pitu, Saborosa, Camarão, a seu gosto, mas traga a cruz. E então, vai agora?
– Vou, claro que vou, porque meu nome é João da Silva dos Santos, filho de Artur Oliveira dos Santos e de Altamira da Silva dos Santos. Vou, e vou trazer a cruz do finado Adinoel Malta...
– A de seu José Barcelos, consertou Zé Galo.
– ... porque o meu nome é Jonzinho, filho de...
– Tá, tá, vai logo.
– Por que não serve a cruz do finado Adinoel Malta? – quis saber Jonzinho.
Zé Galo respondeu:
– Morto fresco. Recente. Não sabe que quando uma pessoa morre, demora pra acordar no mundo dos mortos e que depois de acordado assusta-se com os outros mortos e tenta fugir de lá através da cruz? Seu Adinoel Malta, fresquinho, ainda não acordou no mundo dos mortos. Seu José Barcelos, não, este sim, agarra-se à cruz, pra fugir de lá. Ah, e mais, dizem, e eu acredito, o espírito possui o primeiro que arranca a cruz. Por isso esse medo de bulir em cova e cruz de defunto morto; mas, como você é corajoso...
– Bem, então, sendo assim, mereço logo a metade da pinga. O serviço não é pra qualquer um. Trabalho para macho!
– Nada de metade agora. Vai, traz a cruz e tem um copo cheinho. Não se gaba que é homem? Que não tem medo de nada? Que entra no Cemitério Velho, dá risada e provoca finada Detinha? Sorte sua, morta fresca, fosse morta viva no mundo dos mortos...
– Vou, vou, porque sou filho de... e... o meu nome é... – sumiu na escuridão.
– Ele vai mesmo? Responda, Zé Galo: essa história que você contou é verdadeira mesmo? quis saber Noquinho, amedrontado.
– E se Jonzinho for mesmo e na hora der um troço de medo e ficar grudado na cruz? perguntou Nonga.
– Vai nada, garantiu Zé Galo, vai é pra casa dormir. Um frouxo. Nem pela cachaça se arrisca tanto. Bem, até amanhã, mamãe Avani não dorme enquanto não chego.
– Até amanhã, disse Nonga, retirando-se.
– Até amanhã, responderam todos, e bateram para suas casas.

Passava da meia-noite quando um vulto cruzou a passos trôpegos a Praça Dois de Fevereiro e ganhou a Rua Wenceslau Guimarães. Parou na Praça da Matriz, em frente à Igreja. O vulto era Jonzinho, trazia a cruz do finado José Barcelos.
– E é dele mesmo! disse dona Juca no outro dia, verificando a cruz um tanto indignada com a profanação.
A certeza vinha da xilogravura. Dona Juca havia mandado gravar o nome do marido na cruz: José Barcelos de Oliveira.
Zé Galo, quando soube da coragem de Jonzinho, fez questão de pagar a cachaça. Mas, olhe só a novidade, Jonzinho deixou de beber, não assim por um tempo, de vez mesmo. Já o Zé Galo ficou assombrado por não poder pagar a aposta. Dever não lhe parecia boa coisa, ainda mais num caso assim, onde havia morto no meio. Sem falar que o defunto não tolerava bebida. Desse dia em diante, Zé Galo passou a andar assombrado.