
Dois homens bebem no bar de Preto, na praça da Matriz, em frente à igreja. Raimundo Reis é o que está enfezado e a todo instante blasfema.
– Maldito mar! E vira o copo de cachaça.
João do Velho, seu companheiro de pescaria, parece distante dali, os olhos no cachorro, a seus pés. O animal é já bem velho e a qualquer hora embarca.
– Livre-se desse bicho. Tornou-se imprestável, diz Raimundo Reis, tentando acertá-lo com a ponta do pé, enxotando-o por debaixo da mesa.
João do Velho, agora, prestando atenção ao que diz Raimundo Reis, nota o decrépito cão deitado a seus pés. Imagina que logo terá de enterrá-lo, como se faz a um amigo. Não entende o que ainda o mantém vivo. Seu latido, antes rouco, há muito deixou de ser ouvido. Se o chamam pelo nome, mantém o olhar no chão. Parece envergonhado, sem entender por que ainda vive. Às vezes delira, e num surto maluco imagina latir, pular, sorrir balançando o rabo ao seu dono, fazendo-lhe festa, mas não passa de ataque epilético. Treme-se todo e baba. Sem saber o tratamento adequado, derramam-lhe água na boca, sopram-lhe nas narinas. Minutos depois o cão revive, ergue-se cambaleante e caminha sem saber bem para aonde.
– Mas que diabo aconteceu? pergunta Raimundo Reis.
– É que ele está bem velho.
– Ora, vá-se ao diabo, homem! Estou lá me referindo a esse monte de ossos! O que houve com o mar? Onde se meteram os peixes? Isto sim é o que quero saber.
– Amanhã eles voltam, diz-lhe João do Velho, alisando as costelas do animal.
– Amanhã eles voltam, amanhã eles voltam! Ao diabo, você e esse maldito cão! Assim é que não dá!
– O que quer dizer?
– Ora, ora, compadrito! O que quero dizer. Como se não soubesse. Explodi-los. Explodi-los. Isto, sim, é o que quero dizer.
João do Velho grita ao proprietário do bar:
– Preto! Suspenda a bebida deste homem. O traste não tem jeito.
– Mas há um jeito, Raimundo Reis continua. Há jeito para tudo, menos para a morte, é claro. Amanhã mesmo atravessamos o Canal, e lá, na Gerumana, senhor Celso nos fornec...
– Ora, ora, ora, senhor! Então será que já se esqueceu de finado André de Marina do Campo?
– Um tolo, um tolo que não percebeu o momento de soltar.
Bebem calados, por fim, resolvem atravessar o Canal no dia seguinte, bem cedinho, com o céu ainda estrelado. Celso lhes fornecerá o material.
– Preto, aqui o dinheiro da bebida, diz Raimundo Reis. Amanhã é você quem paga, compadrito, e bate no ombro do amigo.
– Até amanhã, então.
– Até amanhã. Leve fogo e cigarro.
– Vem, Amigo, vem, João do Velho chama o seu animal.
Ambos, trôpegos das pernas, seguem para casa. O homem chega primeiro. Parado e com a porta aberta, aguarda o cão entrar. Ele fareja o chão, onde, provavelmente, uma fêmea se agachara e mijou. Sem ter forças para levantar uma das pernas traseiras, agacha-se um pouco e mija na grama.
– Vamos, bicho danado, pare de inventar lembranças.
O animal entra. No corredor, ele pára e olha o móvel à sua frente, onde costuma se deitar. Sem forças para sequer levantar uma das patas, João do Velho ergue-o e acomoda-o na marquesa. O bicho gira três vezes e se arria, batendo os ossos nas tábuas. Não muda a feição séria. Estica as patas à frente e assim permanece.
Vem a noite. João do Velho preocupa-se com o que acontecerá no dia seguinte. Imagina que fará mal à natureza, matando-a sem controle. Quantos peixinhos mortos... quanta vida interrompida... Tragédia. Tragédia. Mas as tainhas são muitas. Todas boiando, prateadas, reluzindo seu drama à luz do sol. Basta lançar a mão e apanhar o peixe. Fácil. Fácil. Umas afundam, mas lá embaixo já está Raimundo Reis, cheio de fôlego, a apanhá-las. Depois de recolhido o peixe, “vamos embora, compadrito, que a pescaria hoje foi boa.” O mar vermelho. Vermelho. Vermelho.
João do Velho acorda no meio da noite. Os olhos maculados de sangue. Mas logo desfaz a impressão do sonho ruim que tivera, e apura o ouvido. Imagina ouvir algum ruído fora do quarto. Fica quieto, só escutando. Define o trincar das tábuas da marquesa. Talvez o animal esteja inquieto. Deve ter tido também um sonho assustador, pois bicho também sonha, um desses pesadelos magníficos que deixam o coitado certo de que o sonhado é realidade. Acorda angustiado, e ninguém é capaz de lhe entender.
Logo, João do Velho pensa que o som é ilusão dos seus sentidos. A luz da lamparina, imóvel. Não projeta sombra nas paredes. O santo sobre o armário, quieto na figura de papel. Tudo parado, como se a apurar o ouvido, para decifrar o que vem de fora.
– Mas não pode ser, João do Velho diz para si.
Levanta-se, abre a porta e vê o animal sentado, a cabeça erguida.
– Ora, mas você não está gemendo, está uivando.
Enquanto João do Velho se recupera do susto que o animal lhe dá, batem na porta.
– João do Velho! Ei, João do Velho! Tá na hora.
É Raimundo Reis. Traz os olhos miúdos de cansaço. Mas a decisão do homem em realizar a travessia é mais forte do que qualquer cansaço. Tudo muito simples: descem a ladeira do porto, pegam a canoa apoitada na beira do rio Barcelos, remam até à Coroa, e daí à Ilha da Gerumana é um pulo. Senhor Celso os espera com as bananas embrulhadas em um pacote. Os olhos sempre atentos à tamanca dos homens da Capitania dos Portos, que é mais veloz que os barcos tóc-tóc. Tudo tranqüilo, nada de embarcação à vista, tome lá o dinheiro, dê-me cá o pacote. E pronto.
– Não vou! João do Velho diz decidido.
– Ora, ora, compadrito, como assim “não vou.” Que história é essa?
– É o Amigo, deu para uivar de repente, e logo ele, que há anos não emite um ruído.
– Bom, bom, sinal de que a estrada do infeliz se alonga.
– E a sua, Raimundo Reis? E a sua? Por que entrar nessa barca furada?
– Ê, é o diabo. Não me venha com essa conversa de mulher casada. E eu lá tenho rabo de saia!
– Não vou. Não posso ir. Esta é a minha decisão. Peço que você também não vá.
– Ora, ora, compadrito, não venha me dizer que vai abandonar a pescaria por causa de um saco de ossos.
João do Velho não dá resposta ao amigo. Pensa em lhe rogar que abandone a travessia do Canal, pois não prevê coisa boa na Gerumana. Mas nada lhe diz. Quando procura o amigo, não o vê mais.
– Ele se foi.
Amanhece. O galo canta num terreiro distante. João do Velho alisa a cabeça ossuda do animal, que agora está quieto. João do Velho sente frio e abraça-se. Pensa na cama quentinha. Levanta-se. Ao abrir a porta do quarto, um vento delicado entra e desfaz a última chama da lamparina.