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Quem soube da morte de
Janaína e tinha consideração por ela e pela família, veio transmitir seus
sentimentos. Alguns vieram por curiosidade.
Seu Edgar chegou e disse, um
ar condoído:
— Meus sentimentos eternos,
dona Marízia e seu João.
Depois foi a vez de Olica
falar:
— É isso mesmo: a única
certeza da vida é a morte. O resto, o resto é breu...
Donga se aproximou do corpo
de Janaína, olhou-a de alto a baixo, suspirou e disse:
— É, meus amigos, a perda é
grande. Mas Deus sabe o que faz. Se ele quis ela para Ele... quem somos nós,
hem, quem somos nós? Tão novinha... Mesmo morta, conseva uma viçosidade...
Logo todos mantiveram-se quietos. Adotaram feições piedosas e nos seus olhos já havia prenúncio de
lágrimas. É que a mãe da morta surgiu de repente. Mas calma, como se em transe.
Todos queriam compartilhar a dor, sofrendo com ela. Todos chorosos.
Aproximou-se do corpo da
filha. Inclinou-se e a beijou demorado no rosto. Quanta dor nessa paz. Quanta
diferença de quando se atracaram, quando Janaína estava em crise. Sua menina
não queria dizer aquelas palavras malditas. Ela estava doente. Sim. Sua
santinha estava possuída por... A mulher teve um sobressalto e seu corpo pesou
sobre a cama de molas, que emitiu um gemido assustador. Ergueu-se. E todos puderam
ver a dor da mãe que perde um filho. As faces
encharcadas de lágrimas e a marca da dor estampada no semblante. Mesmo
desnorteada, a mãe acariciou o rostinho da filha, e, sem tirar os olhos dela,
perguntou a seu João do Velho:
— Seu João, o senhor se recorda
que Marcolino de Caboquinha roubou o rádio da finada Zulmira?
— Lembro. Claro que me
lembro. Quem não se lembra disso? Ele roubou o
rádio da velha, que era cega, e foi vender em Tapuia. Mas que
importância tem isso agora?
Donga se lembrou do fato e completou:
— Foi até o Zé de Celso de
dona Antonina com seu Dagoberto quem comprou o rádio roubado. Não foi isso
mesmo?
— Foi.
Pinga-Fogo, curiosa, quis saber:
— Então?
—Então me diga, seu João: se
Marcolino de Caboquinha, que é um ladrão, tivesse consciência da culpa e
quisesse se punir e tivesse que cortar um órgão do corpo, que órgão ele teria
de cortar?
— A mão ladrona, claro.
Olica disse mais:
— Ou as duas, se forem
cúmplices uma da outra. Mas por que essas perguntas, dona Sônia? O desgraçado
não tem consciência não, por isso nunca haverá punição para ele. Continua é se
apossando das coisas alheias. Ladronagem é herança de sangue. O pai dele e o
pai do pai dele roubavam. O menino herdou esse bem maldito..., ou será esse maldito bem?... sei lá como dizer isso... Tudo da vida de cada um está no sangue...
— Pois bem, seu João. E se
alguém, por maldade, injuriar ou caluniar um outro alguém, e, com consciência
de culpa quiser se punir, que órgão do corpo esse alguém cortaria?
— Oxe, mas que pergunta? A
língua, claro. Mas não estou entendendo onde a senhora quer chegar.
— E se um homem tirar uma
moça de casa, lhe fizer mal e não assumir nenhum compromisso com essa moça e,
sendo pego em consciência de culpa, hein, que órgão do corpo esse homem, ele
mesmo, teria de cortar fora?
Donga se adiantou e disse:
— Essa eu respondo. Ele
teria de cortar a... ui, só de pensar dói.
João do Velho reclamou com
ela.
— Ora, dona Sônia, mas que
pergunta mas sem cabimento!
— Vamos, responda, seu João.
— Vou responder nada! Eu
respeito a senhora e...
— Preste bem atenção, seu
João do Velho, eu, esta mulher que o senhor está vendo aqui, esta mulher não
merece respeito nenhum. Entendeu? Respeito nenhum. Eu sou uma mulher que foi
enrabada pelo Cão. Uma mulher que não merece viver, e... mas isto seria um
prêmio e não um castigo... O senhor percebe?
— Mas o que é isso, dona
Sônia?! “Meu Deus, ela está louca.” Vamos, pare com isso. A senhora sempre foi
moça de boa família. Casou-se com homem sério. É mulher respeitosa. Como alguém
poderia imaginar uma coisa dessas da senhora?
Vendo que seu João do Velho
não ia responder a pergunta, ela mesma respondeu:
— Cortaria o membro fora,
seu João.
Seu João sabia que dona
Sônia não estava boa da cabeça, mesmo assim ele a respeitava, e por isso achou
melhor se afastar.
Antes de seu João sair, ela
virou-se, afastando-se da filha, pegou o braço do homem e perguntou:
— Mas e eu, seu João, vamos,
me responda, que órgão do corpo eu posso arrancar fora, hein? Sei o mal que
fiz, mas não sei exatamente onde a fonte do mal se encontra em mim.
Todos os presentes calados.
Janaína, agora, iluminada pela luz de uma vela, esboçava leve sorriso.
Sônia soltou o braço de seu
João do Velho e saiu num caminhar pesado pelo corredor comprido e escuro. Ela
apertava a cabeça com as mãos, como se quisesse esmagá-la.
***
Continuação de O Pescador de Almas.